Siá Tonha - cap. VII
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“Qual o fim objetivado com a reencarnação? Expiação, melhoria progressiva da Humanidade. Sem isto, onde a justiça?” (KARDEC, 2018)
Aquela manhã do ano de 1750 iniciou com uma neblina densa e o frio cortante.
Eugênia espiava pela janela da alcova, quando Manuel chegou e subiu as escadas, saltando os degraus de par em par, fazendo-os estalar como se fossem se partir, demonstrando a pressa que dele se apossava.
Ela também deu meia-volta para ir ao encontro do marido, o que não foi necessário, porque o homem adentrou, ruidosamente, no cômodo, dizendo em altos brados:
-Assinado! Foi assinado o tratado.
- E, então? Quando partes?
- Os ajustes iniciarão com os jesuítas. Farei o possível para zarpar com os primeiros contingentes. Vou me por às ordens, pois não. Vou ganhar as terras e o ouro que nelas jaz. Ficaremos ricos. Vou dar-te um título de nobreza.
A mulher deixou transparecer nos olhos um brilho misterioso, que mesclava satisfação e também dava mostras da ambição que a tomava. Há algum tempo associara-se a uma trama sórdida para alimentar os grandes conflitos, que já não eram poucos, entre as duas coroas. Isso agora redundava naquela notícia que recebera.
Eugênia se introduzira na corte, aos poucos, entre as aias da rainha, e tornara-se exímia intrigante de alcova, recolhendo informações e manipulando-as no seu interesse, que era de amealhar fortuna e favores.
Casara-se com Manoel Freire, um oficial simplório que lhe fazia todas as vontades, apenas para ter acesso às informações que circulavam entre os militares e guardas reais. Tornou-se assim uma cortesã temida, tanto quanto influente, dado às relações adulterinas com o mais influente ministro de D. João V e, não raro era disputada pelo próprio rei, em muitas ocasiões que dela se servia para as suas desastradas decisões.
A beleza de Eugênia tornava-a destacada dentre as demais damas, o que a fizera cobiçada pelos nobres venais do séquito real.
Entre uma orgia e outra recolhia dos homens em estado de embriaguês e das próprias mulheres que, levianamente, cometiam inconfidências sobre seus maridos e amantes, confissões que utilizava sempre para obter benesses para si e para Manuel que era conivente com o procedimento da esposa.
Assim, ela foi nutrindo, junto com o execrável grupo que cercava o rei e seus ministros, a desconfiança e a belicosidade com os espanhóis e, mais do que isso, Eugênia tinha relações na corte espanhola, a quem fingindo ser informante infiltrada na casa real portuguesa, repassava informações falsas, que levaram a ambos os reis suporem-se em graves prejuízos com o tratado vigente, bem como disseminou o ódio aos jesuítas, imputando-lhes a autoria da construção de um grande império além-mar.
Forjou cartas com o auxílio de um falsificador, rendido aos seus encantos, que imitando a caligrafia de um administrador de Sua Majestade nas colônias dava contas de muitos revezes e até insinuando a possibilidade da perda das terras, pela edificação de um grande império que em breve se sublevaria contra a Coroa.
Assim, muitos dignatários leais foram levados à forca, em razão dessas conjurações maléficas.
Nascera destas tramas sombrias e espúrias o movimento que culminara com a assinatura de um tratado que atingiu tantas almas e causou sofrimento a muitos seres cuja vida estava alinhada com outros propósitos distantes das motivações que o ditaram.
Antonia olhava a gigantesca tela que Sepé plasmara diante dela.
Reconhecia-se na perversa e fútil Eugênia, enquanto grossas lágrimas rolavam pelo seu rosto.
Como se a memória estivesse sob uma força que fazia com que os fatos se aproximassem no tempo, podia sentir o ambiente sufocante da corte, as paredes escuras da construção que se desenhava ante os seus olhos. Parecia ouvir, também, vozes que clamavam por piedade, gritos de pavor e imprecações contra ela.
Vendo-a, naquele momento de dor profunda pelo reencontro com as lutas e crimes passados, Sepé interrompeu-lhe os pensamentos e aproximando-se segurou-lhe as mãos, dizendo:
- É o passado, Antonia, que você refez com muita determinação na sua caminhada.
- Siá Tonha recolheu todas essas almas a quem outrora se consorciou para os crimes cometidos. Você é uma alma vitoriosa, minha irmã.
- Já tiveste tantas outras existências em que tentaste o reajuste, mas sempre falhaste, porque a ambição pela posse do ouro, sempre foi um traço muito forte na tua individualidade. O pedido pela existência simples, sem as luzes do saber do mundo, a orfandade, o quase isolamento foram as bênçãos que pediste e das quais soubeste fazer bom uso.
Com extremado carinho o venerando cacique foi enxugando as lágrimas de Siá Tonha com um facho de luz que emanava de sua destra em leve movimento ondulatório diante da face da sua pupila.