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Semeando Espinhos - 4ª parte


Nos primeiros instantes da separação, a infeliz Madeleine imaginava que a liberdade lhe traria felicidade. Mas a sua condição de mulher, expulsa do lar pelo marido que era um alto dignatário da corte, fechara-lhe todas as portas. Conseguira apenas ser acolhida numa pensão sórdida, onde viviam cortesãs e ali foi, aos poucos, se desfazendo das jóias, pertences, roupas luxuosas e sem dinheiro para manter-se, viu afastar-se também o homem que a arrastara à penúria, porque o tempo e os abusos com o próprio corpo já deixavam nela as suas marcas impiedosas. Teve de entregar-se à condição de serviçal da imunda estalagem para garantir uma cama e não morrer de fome.

Quem a visse, com roupas simples, cabelos maltratados, desprovida dos adornos e jóias de antanho não reconheceria a bela mulher que fascinava os homens e infundia inveja às damas.

A miséria pesava-lhe muito, mas a dor maior era o abandono. Ela o amava. Jogara fora o lar, o marido que a cumulava de cuidados, a condição social, tudo.

Interroguem friamente suas consciências todos os que são feridos no coração pelas vicissitudes e decepções da vida; remontem, passo a passo, à origem dos males que os torturam e verifiquem se, as mais das vezes, não poderão dizer: Se eu houvesse feito, ou deixado de fazer tal coisa, não estaria em semelhante condição. Item 4 do Cap. V de "O Evangelho Segundo o Espiritismo".

A pobre mulher soubera que a esposa dele partira, fora viver num burgo distante onde tinham vastas propriedades, levada pelo pai, porque também não suportara mais a vida devassa e os escândalos provocados pelo marido.

Ingenuamente, pensou que tal situação pudesse motivar o amante a ampará-la.

Reuniu as últimas roupas decentes que guardava, ainda, e vestiu-se da melhor forma que pode para bater a sua porta.

Nem ouvida foi, não recolheu dele uma palavra, um olhar ou gesto, veio-lhe ao encontro um criado dizer que o senhor estava ausente. Não estava, ela sabia. Podia ouvir o violino, instrumento que ele executava com maestria. Ouvira-o tantas vezes, quando dizia compor para ela sinfonias que depois, no contato com outras pessoas cultas, sabia serem composições de outros, mas dava-lhe crédito até porque não possuía cultura musical.

Insistiu muito, mas o pajem estava ali, impassível, obstando a sua passagem. Cada nota do violino era uma lança aguçada a penetrar-lhe o coração, o choro pungente das cordas misturavam-se ao sabor amargo do arrependimento. Nunca sentira, antes, ódio por ele e mesmo desprezada, guardava a sua lembrança com carinho, desejava-o, esperava um dia tê-lo de volta. Agora, pela primeira vez, algo queimava o seu peito, saturava-lhe todo o ser e uma rigidez imensa tomava-lhe o corpo, doía-lhe a cabeça e uma vontade férrea, terrível de vê-lo morto, assomava a sua mente.

Suas lágrimas eram escaldantes, mas aos poucos os soluços foram cessando e o pranto emudeceu. Ali começava, verdadeiramente, o processo de expiação de uma alma que desperdiçara todas as abençoadas chances de uma vida digna, bafejada pelas lutas redentoras que edificam os sentimentos nobres.

As intervenções criminosas da megera do bosque, no seu corpo, semearam a enfermidade que não tardou a chegar. Sofria muitas dores que impediam o trabalho rude de serviçal. Não tendo mais préstimos para a lida do prostíbulo foi jogada à rua. Arrastava-se, penosamente, esmolando pelas calçadas, disputando sobras de comida com os demais mendigos. A enfermidade que consumia suas entranhas emprestava-lhe um mau cheiro que afastava até os miseráveis, que perambulavam com ela pelas vielas. Em meio a dores excruciantes, sem conseguir abrigar-se sob as pontes, porque era afastada pelos demais que não lhe suportavam a presença, os dias e noite eram infindáveis e de imenso sofrer. Muitas vezes fora até a beira do rio e contemplava suas águas escuras, arregimentando forças para nelas se precipitar. Não conseguia, e pensava consigo mesmo que era covarde até para isso.

Madeleine não percebia, era que um Espírito de mulher, com a fisionomia repassada de nobreza a enlaçava, impedindo mais um gesto tresloucado.

Foi numa manhã cheia de brumas, quando as névoas se dissipavam, que ela o viu. Há muito tempo deixara de segui-lo, alimentando-se do ódio, bastava-lhe a lembrança, não lhe suportava a simples visão. Mas aquele dia fora inevitável. Uma carruagem dobrava a esquina, velozmente, enquanto ela arrastava-se penosamente para alcançar o outro extremo da rua. O cocheiro hábil evitou o acidente, mas irritou os ocupantes que foram sacudidos violentamente com o sofrear dos animais. Ao ouvir a voz ela o reconheceu: - “Você quase nos mata por um farrapo humano!” - Bradava o cavalheiro para o cocheiro. Dentro do veículo elao reconheceu, estava em companhia da esposa, que por certo voltara ao convívio, trazendo ao colo uma criança que chorava assustada. Os olhos das duas mulheres cruzaram-se num segundo e reconheceram-se.

Nada mais tinha a fazer ou perder, pensou. Sentia as forças declinarem com rapidez. Pedia a morte que já tardava muito.

Enquanto o pensamento fervilhava deixou-se desfalecer nos degraus da grande escadaria da catedral, onde mendigava até ser enxotada pelos transeuntes.

Naqueles dias se tornara mais e mais frequente a presença deles, daqueles dois vultos ameaçadores, que surgiam dos infernos para atormentá-la. O riso convulsivo e as acusações recomeçaram. Não conseguia se mover, reagir. Eles a torturavam, constantemente, chamavam-na de assassina, criminosa e nesses momentos suas dores tornavam-se insuportáveis. Gritava até perder os sentidos.

Com o ódio em borbotões percebera-os, ameaçadores, descendo os degraus. Ergueu-se com uma força desconhecida e como um autômato esgueirou-se pelas ruas. Sabia onde Ferdinand morava. Era ali que ficaria. O que dela restara iria empestar os seus jardins bem cuidados para que ao andar por eles a lembrança dos crimes por ele cometidos ficasse gravada para sempre na sua mente. Queria justiça!

Ai daquele que diz: nunca perdoarei. Esse, se não for condenado pelos homens, sê-lo-á por Deus. Com que direito reclamaria ele o perdão de suas próprias faltas, se não perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter limites, quando diz que cada um perdoe ao seu irmão, não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes. Item 4 do Cap. X de O Evangelho Segundo o Espiritismo.

continua...

O texto acima é parte de uma história cujos capítulos serão publicados,

nesta coluna, todas as sextas-feiras.

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