Siá Tonha - cap. II
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Começou pela parte IV? Leia os capítulos em sequencia:
Assim aquele Espírito em provação rude foi fazendo a sua trajetória na Terra, caminhando como a benfeitora amiga lhe dissera nos recuados dias da juventude.
Siá Tonha sabia, sempre soube, quem fora o seu agressor, o soldado que desertara e a atacara no mato.
Reconheceu-o no primeiro dia em que o trouxeram, anos depois, amarrado para que ela “afastasse o demo” como diziam os peões que o conduziam.
Embora a barba já grisalha e as rugas no rosto ela o reconhecera. Nunca tinha visto o Coronel, embora o rancho ficasse em suas terras. Todas as vezes que Dona Mariana chamou na fazenda, quando os meninos eram pequenos, era a mãe de Antonia, Dona “Ceição” quem ia até lá. Depois apenas Dona Mariana vinha ao rancho, até aquele dia, em que Siá Tonha atendera Hilário pela primeira de muitas vezes. Sentiu no seu coração imensa compaixão por aquele homem, cheio de haveres, tão poderoso e tão escravo dos seus erros. Nenhum laivo de ressentimento ou sentimento de vingança animavam a alma de Antonia, tanto que acalmava o enfermo espiritual, devolvendo-lhe momentaneamente o juízo.
Assim foi, por anos a fio, a cada assomo de loucura do Coronel.
Aquela era uma manhã de primavera. As arvores floridas coloriam os matos, espalhando perfume pelas coxilhas, os pássaros gorjeavam felizes aquecendo-se aos primeiros sóis que emergiam do longo inverno. As abelhas zumbiam buscando o néctar para as suas colméias. O capim dos campos brilhava com o orvalho matinal cujas gotículas pareciam pequenos diamantes pendurados nos tufos verdes.
Dona Mariana acordara cedo e com uma vontade imensa de acorrer ao rancho de Siá Tonha. Nem sabia o porquê, mas algo lhe segredava que devia ir. Chamou Nonato, o capataz, e pediu-lhe para preparar a charrete e pôs-se a caminho. A medida que o pequeno veículo andava pelos corredores abertos na mata, o coração de Mariana ia se apertando, contemplava e extasiava-se com a beleza daqueles sítios, mas o sentimento que nutria era aflitivo, a ponto de as lágrimas rolarem pelas suas faces sem que pudesse contê-las.
Quando chegaram, Mariana estranhou a quietude do lugar. Siá Tonha tinha um sexto sentido e quando alguém se aproximava do rancho já a encontrava à porta, com aquele sorriso bondoso acolhendo o visitante, com a costumeira saudação: “- Se achegue !”¹
Mas Siá Tonha não veio receber D. Mariana, como sempre o fazia. A estancieira desceu da charrete e chamou, destrancando o gancho da porteira:
- Siá Tonha!
- Siá Tonha!
- Alguém ai?
Nada, só o murmúrio suave da brisa que afagava os arvoredos respondeu-lhe.
Mariana foi adentrando o pátio coberto de folhas, demonstrando que Siá Tonha não fizera a varrição diária, pois aquele espaço estava sempre impecável, limpo com a vassoura de “chirca”. O cusco levantou-se do portal e veio cabisbaixo ao encontro da visitante, não latiu nem abanou o rabo em festejo como era costumeiro, sua aparência era de tristeza o que apertou ainda mais o coração de Mariana, que apressou o passo e entrou no pequeno casebre de sapé. A porta estava destrancada. Mariana observou que o fogão estava apagado. Ela, então, afastou a cortina de renda branca que há muitos anos tinha dado de presente à Siá Tonha e ela nunca usara, dizia que era para um dia especial. Estava ali pendurada na divisão do pequeno cômodo. Mariana então a viu, deitada na cama rústica, com um vestido diferente dos que sempre usava, e que também devia ter sido presenteado por alguém, um véu branco envolvendo a cabeça e as mãos postas sobre o peito, segurando o crucifixo que usava para muitas de suas rezas e benzeduras.
D. Mariana ficou olhando aquele quadro singelo e tocante. Sentou a beira da cama e chorou. Olhando para o rosto rugoso de Siá Tonha sentiu que havia tanta paz naquela face marcada pelo tempo e suas lutas. Ela partira de forma solitária como vivera e preparara tudo para isso. A estancieira balbuciou uma oração onde misturou gratidão, pedidos e também o sentimento de solidão que se desenhava forte na sua alma.
Quem visse Dona Mariana, a estancieira poderosa e rica, ali ao pé dos despojos de uma pobre anciã que vivia da caridade alheia, custaria a compreender a dor daquela mulher, cujos sentimentos nem ela própria entendia a intensidade com que afloravam.
Nonato estranhando a demora da patroa aproximou-se do rancho e chamou:
- Patroa, tudo bem com a “sora”?
Mariana saindo dos seus pensamentos e reflexões limpou as lágrimas, colocou o lencinho de seda, bordado com suas inicias sobre o rosto da morta e dirigiu-se para a porta.
- Nonato, Siá Tonha nos deixou!
O capataz recebeu a notícia como se fosse uma chicotada. Aquele homem grande, forte, afeito aos trabalhos rudes do campo caiu de joelhos ali mesmo, tirando o chapéu em sinal de respeito e apertando-o contra o peito, prorrompeu em pranto. Dona Mariana não ficou surpresa com a manifestação do seu capataz, sabia o quanto Siá Tonha era importante para aquela gente que às vezes encontrava nela, nos seus chás e benzeduras, o único alívio para as suas dores. O filho mais velho de Nonato só viera ao mundo e estava hoje um “guri” forte, pela intervenção da benzedeira.
- Entre, Nonato. Vá se despedir dela e depois venha que temos providências a tomar.
O capataz ergueu-se com dificuldade, como se a dor lhe tivesse tirado as suas forças e foi prestar suas últimas homenagens àquela que tantas vezes beneficiara a ele e sua família.
Dona Mariana não via, mas sentia, ao acomodar-se na charrete para a volta à fazenda, enquanto Nonato velava Siá Tonha, que aquele lugar estava diferente. Sempre fora um oásis de paz para ela e para os que ali buscavam socorro, mas agora parecia que presenças invisíveis estavam mais presentes, como se uma multidão se acotovelasse para receber alguém muito querido.
Continua...
Continue a leitura dos demais capítulos:
1. Charrete - veículo leve de tração animal, normalmente descoberto, que tem duas rodas altas e assento para duas ou três pessoas (incluído o condutor) e que é puxado por um cavalo.
2. Guri é um termo adotado no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e parte do Paraná como sinônimo de "menino", "moleque", "criança" ou "rapaz".
3. “sora” – corruptela usada por alguns habitantes do interior para o pronome Senhora.