Siá Tonha - cap. VIII
Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corpórea. Volvendo à vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado; nada mais há, portanto, do que uma interrupção temporária, semelhante à que se dá na vida terrestre durante o sono, a qual não obsta a que, no dia seguinte, nos recordemos do que tenhamos feito na véspera e nos dias precedentes.[1]
Refeita do choque inicial Antonia voltou a ter a visão ativada, em novo momento. Aqueles instantes traziam do passado sentimentos e recordações dolorosas, em movimento de catarse para que a compreensão e o autoperdão se fizessem, liberando a alma dos antigos cativeiros por ela engendrados nos tormentosos equívocos cometidos.
A sequência de fatos mostrava que as manipulações e os conchavos infelizes, ditados pela ambição e pela perversidade de Eugênia, pareciam ter o êxito pretendido. Manuel fora nomeado oficial-mor de uma das primeiras tropas do exército enviadas à colônia para expulsar os habitantes da terra que se negavam a sair. A terra entregue ao domínio português deveria ser tomada pelas armas. Os intrépidos e aventureiros soldados, que conseguissem plantar a bandeira real nas longínquas terras do sul, partilhariam não só as grandes extensões de terra, mas se apossariam dos tesouros dos jesuítas, aprisionariam índios e os venderiam como escravos, tornando-se grandes donatários e fazendo fortunas incalculáveis, era assim que pensavam aqueles homens que se lançavam ao mar, sedentos de sangue e ouro.
Era o sonho que embalava, também, a alma de Eugênia, ao observar os navios zarpando mar a dentro rumo à América. Em um deles estava toda a sua família - Manuel, o esposo e o filho recém saído da adolescência – indo- em busca do paraíso e de riquezas. Pela retina da ambiciosa dama desfilavam cenas de palácios, serviçais, jóias, sedas e todos os deleites que, segundo ela, o novo mundo traria. Sua vida estava prestes a mudar para sempre era o que pensava.
Daqui a algum tempo partiria também para tomar conta das possessões que Manuel conquistaria com sua participação na guerra.
Voltando-se, deixou para trás o cais, tecendo ilusões e acalentando sonhos de grandeza.
Os meses se passaram e as notícias da terra nova tardavam a chegar.
Havia uma resistência nos territórios cedidos. Os silvícolas, segundo as parcas notícias obtidas, não se submetiam aos termos do tratado.
Muitas vidas foram perdidas nas guerras guaraníticas e não se sabia, ao certo, quem dentre os que partiram ainda estavam vivos.
Aquele entusiasmo pueril de Eugênia, com a visão de uma riqueza que não se materializava foi arrefecendo. As economias que juntara e que a manteriam até partir para a America começavam a escassear. O próprio tesouro real que, a princípio, se responsabilizara pelas famílias dos soldados, enviados a serviço do rei, diante dos insucessos constantes da campanha, começou a abandonar aqueles que, a seu juízo, já não se sabia se continuavam ou não a serviço da coroa portuguesa, uma vez que havia também desertores, que seduzidos pela organização e pujança das missões somaram-se aos jesuítas na defesa das reduções. Isso servia de justificativa ao trono para não dispensar recursos aos que ficaram sob suas expensas.
Eugênia se desfez das poucas jóias que possuía e também de alguns objetos que guarneciam a casa e decidiu, junto com o próximo contingente enviado, partir para a América encontrar Manuel e o filho.
Mais uma vez, Antonia sofria ao rever a sua trajetória que agora lhe parecia tão próxima. As vestes e a aparência tornavam-se, para ela cada vez mais incômoda.
Sepé olhou-a com bondade e disse-lhe apenas: Vamos parar aqui hoje, Antonia, e concluiu aplicando-lhe energias sobre o coronário, o que foi restituindo a serenidade àquele bravo coração.
Referência:
[1] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. FEB, 2008.p.86.