Siá Tonha - cap. IX
“Porém, os males mais numerosos são os que o homem cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo.”¹
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Capítulo IX
Antonia continuava revendo as cenas do seu passado, agora com menos sofrimento, ante os cuidados amorosos que Sepé lhe dispensava no interregno entre um momento e outro de acesso às reminiscências.
Via-se em alto-mar na viagem tenebrosa em que as tempestades batiam a embarcação, que parecia se despedaçar em meio às vagas gigantescas.
Os dias de calmaria e sol escaldante nos compartimentos internos do navio, quase sem iluminação, onde ficava recolhida com as demais mulheres e crianças que compartilhavam a cabine, pois não tinha recursos para viajar na primeira classe.
A embriaguez dos soldados era uma ameaça constante, contornada pelo comandante, com a clausura das mulheres a fim de que não fossem molestadas.
As mortes sucessivas pelas doenças que grassavam a bordo eram contadas pelo rufar dos tambores no convés, cada vez que um corpo era jogado ao mar. Por vezes, também havia execuções que espalhavam a sua atmosfera nefasta entre a tripulação, quando o Capitão sentenciava alguém pela prática de crimes que colocavam em risco a vida e a segurança dos marinheiros e passageiros.
Eugênia, no entanto, sobreviveu. Astuciosa, cativou o Capitão com os seus encantos e ele logo a acolheu na sua cabine.
Quando a viagem acabou, o desembarque no Sul da América foi decepcionante. A ambiciosa mulher, afeita às paisagens europeias e às facilidades da corte teve um choque ao se deparar com as precárias condições do vilarejo portuário, bem como das circunstâncias da viagem rumo às missões. Imaginava, então, que o Império do qual ouvira falar estaria mais além, em outros lugares, e pensando assim renovou suas forças para seguir com as tropas, em busca de Manuel, do filho e do sonhado Eldorado nas terras novas.
As cenas da marcha rumo às reduções se desdobravam célere na tela plasmada no confortável espaço onde Antonia relembrava o passado. Os ataques dos índios, a fome, a sede, as intempéries de uma terra desconhecida, o assédio dos soldados e a incerteza de que Manoel e seu filho estariam vivos foram minando a alma de Eugênia.
Após um saque em uma pequena povoação, o exército prosseguiu, e Eugênia decidiu ficar. Oculta nas matas esperou os soldados se afastarem e foi auxiliar os feridos que agonizavam, depois do ataque. Disfarçou-se como pode vestindo as roupas que encontrou em um varal, para parecer mais próxima daquelas pessoas. Percebera que alguns falavam o seu idioma, com um sotaque diferente e outros - índios - uma língua estranha que ela nunca ouvira.
Talvez esta tenha sido a ação que deu início ao despertamento, naquela alma rude e fútil, dos primeiros assomos de uma postura virtuosa, que o tempo auxiliaria a consolidar.
Foi identificando os que ainda respiravam emitindo gemidos débeis e começou a arrastá-los para dentro da construção mais próxima. Impulsionada por uma força estranha, viu-se buscando água, lavando as feridas e, intuitivamente, ia conseguindo fazer pequenos e grandes curativos com panos que ia encontrando nas habitações, utilizando algumas essências e ervas que comprara ao desembarcar no porto e que o comandante recomendara serem úteis para a viagem.
Algumas mulheres e homens foram aos poucos saindo das matas e vendo a determinação daquela criatura em socorrer os feridos, moveram-se para auxiliar os vivos e enterrar os mortos.
Os dias se passaram e Eugênia tornou-se uma liderança entre aquelas criaturas que restaram, um misto de benfeitora e administradora que era acatada, respeitada e temida também.
O lugarejo era, na verdade, um garimpo de ouro e assim que identificou a atividade ali exercida a ambição dominou-lhe os pensamentos e ela restabeleceu a mineração com os que sobreviveram.
O ataque deu-se ao amanhecer, quando muitos dos homens ainda estavam no burgo o que fez com que a matança fosse maior. Muitas crianças que escaparam e foram resgatadas nas matas próximas haviam ficado órfãs e tiveram que ser redistribuídas entre os sobreviventes.
A própria Eugênia, com intenções malsãs, escolheu algumas meninas que ficaram aos seus cuidados.
O burgo e a lavra cresceram e a “patroa”, como passou a ser chamada, fez fortuna, como queria, mas com métodos que, relembrados por Antonia voltaram a provocar-lhe as lágrimas. Os padres que controlavam a lavra, na primeira vez que enviaram emissários para buscar a produção, estes não retornaram e os que vieram, a seguir, também não.
As crianças adotadas por Eugênia ao atingirem a adolescência, recém saídas da infância, eram postas a serviço dos comerciantes e garimpeiros que, naqueles ermos, despendiam fortunas para saciarem seus instinto, enriquecendo mais e mais a “patroa”.
Assassinatos, envenenamentos e todos os tipos de artifícios que se destinassem a manter o poder de Eugênia eram executados a seu mando. Nunca soube do paradeiro de Manuel e do filho. Também não os procurou mais. Cercou-se de muitos capangas comandados por Quintino, um mestiço que lhe tinha uma fidelidade canina, com quem acabou “casando”, tudo com o objetivo de manter o domínio sobre aquelas terras e o garimpo.
Mas tanto os garimpeiros que para ali afluíram, muitos deles soldados desertores, assim como os índios que se reuniram ali começaram a ver em Eugênia e sua exploração impiedosa, uma inimiga a ser derrotada.
Assim uma rebelião culminou com o assassinato de Quintino e da “patroa”.
Siá Tonha olhava aquelas cenas e parecia sentir aqueles momentos terríveis em que caiu atingida pelo punhal de um dos rebeldes, e ainda viva, via as chamas ateadas a sua casa se espalharem rapidamente consumindo, paredes telhado que desabaram sobre ela, até que tudo escureceu. Eugênia perdeu os sentidos e a vida física.
Sepé, mais uma vez, segurou as mãos de Antonia e falou com repassada ternura na voz:
- Deus é amor, Siá Tonha, e sua bondade infinita trouxe para o teu coração o ouro dos sentimentos. “o amor cobre a multidão dos pecados”.
Referências:
1. A gênese os milagres e as predições segundo o Espiritismo A gênese > Capítulo III - O bem e o mal - Origem do bem e do mal. item 6.