Siá Tonha - cap. XIII
- Beth Barbieri
- 29 de ago. de 2019
- 3 min de leitura

Estivera ali toda a noite velando pelo ser querido que se despedia da Terra.
Carregara os despojos da filha para longe do rancho, depositando-os em um lugar próximo ao rio para que o seu Espírito seguisse a torrente no rumo do mundo sem dores, como as crenças do seu povo diziam.
Reunira uns poucos pertences e partira dali. Iria buscar outro lugar. Não retornaria mais ao rancho que as abrigara durante a curta existência de Anauê. Nada mais a prendia ali ou a qualquer lugar.
Sentia uma tristeza profunda, mas ao mesmo tempo uma força que não sabia de onde vinha. Sem se dar conta, Ierecê estava amparada pela presença imponente e amorosa do Cacique Sepé, que se fazia acompanhar de Joaquina, ambos solidários no apoio àquela alma nobre, que finalizava uma bela missão junto ao Espírito Eugênia/Anauê.
A mãe índia perambulou muitas luas, parecia andar a esmo, mas a espiritualidade sempre tem um desígnio para aqueles que servem aos propósitos do Criador para beneficiar as suas criaturas.
O longo tempo de cuidados com a filha deram à Ierecê uma habilidade ímpar para tomar conta destas criaturas com deficiências severas, em um tempo em que elas eram vistas momo mortas-vivas e, muitas vezes, desprezadas, abandonadas a própria sorte para terem a morte antecipada de forma cruel. Os amoráveis benfeitores encaminharam-na, então, para que continuasse a servir nos propósitos do bem.
Exausta e já sem provisões encontrou uma canoa deixada à beira do rio. Entrou nela, desamarrou-a e foi remando até a correnteza, onde a deixou seguir, encolhendo-se no fundo da embarcação, sendo acometida por um sono reparador.
- Está viva! É uma índia! Não é destas paragens!
Ao abrir os olhos viu muitos outros fitando-a intrigados.
Ergueu-se rápido na canoa e num impulso de defesa procurou o arco, mas não o encontrou.
- Calma! Somos de paz. Era uma mulher negra, com o olhar bondoso e um sorriso largo que lhe fala, estendendo a mão.
- Venha! Deve estar faminta. Aqui todos são bem recebidos.
Ierecê foi reparando que aquele era um grupo bem diferente, muitos negros, brancos, índios e parecia que conviviam bem, pois não havia entre eles ninguém armado, nem com ar ameaçador.
- Sou Cidália! Aqui me chamam mãe Cidália. E você de onde vem?
Ierecê não respondeu.
Cidália compreendeu e mais uma vez estendeu-lhe a mão, o que pareceu exercer o poder de um imã sobre a recém chegada. Ierecê deu-lhe a mão e se deixou levar.
Ali era uma comunidade que acolhia todos os deserdados do mundo, os expoliados pelos conquistadores, escravos fugitivos e libertos que não tinham para onde ir, índios expulsos de suas tribos e muitas pessoas com deficiências físicas e mentais, abandonadas nas matas, pelos parentes, para morrer.
Mãe Cidália recolhia e tratava-os a todos.
Ierecê com o passar do tempo foi, junto com Cidália, convertendo-se em cuidadora e anjo bom daqueles infelizes nos quais via a sua Anauê.
Cidália desencarnou e ela continuou a liderar a comunidade. Descobriu que possuía ao dom de curar pelas benzeduras que fazia e também aprimorou a arte de ministrar os chás e infusões aprendidas com Joaquina, no quinquênio que com ela conviveu.
Sepé e Joaquina tão logo conseguiram despertar e interessar Eugênia/Anauê, já em processo de desligamento das limitações do corpo, aproximaram-na de Ierecê para que o amor entre ambas, continuasse a cultivar no seu coração o amor ao próximo e o desejo de fazer o bem, a fim de que a pupila vencesse os impulsos da cupidez e do poder a qualquer preço.
Até hoje, naquelas plagas, o povo presta suas homenagens e gratidão à índia que curava e à mãe negra, que socorre os infelizes nos momentos mais difíceis de sua existência.
Cidália e Ierecê renasceram no século XX e edificaram, na região missioneira, alguns dos núcleos espíritas que deram início à divulgação do Consolador Prometido.
Eugênia/Anauê, após outra breve existência em que desencarnou trucidada com a família numa das revoluções que ensanguentaram o Rio Grande, obteve a chance abençoada de renascer na personalidade de Sia Tonha.