A coragem para ser bom - cap. 13
Todos vós que dos homens sofreis injustiças, sede indulgentes para as faltas dos vossos irmãos, ponderando que também vós não vos achais isentos de culpas; é isso caridade, mas é igualmente humildade.[1]
Ramão continuava abrigado na casa de amparo às testemunhas, embora indiciado como suspeito pela morte dos vigias da fazenda, no dia da fuga, mantinha-se sob proteção, junto com Vilmarino e Demétrio encontrados pela polícia. Dos outros dois fugitivos não se sabia o paradeiro.
- “Nós vai se ferrá, como sempre” - dizia Ramão, caminhando no pátio, cercado de muros bem altos. Seu Nivaldo falou, disse que ia fazer e acontecer e sumiu.
- “Se acalme, homi, nois tá vivo, isso é o qui importa” – resmungou Vilmarino.
- “Eu já tinha inté feito minha reza pro Padim Ciço, pois achei que não saía vivo daquele mato – falou Demétrio, pigarreando.
- Minha mãe ficou lá com meu menino, fiquei de mandar algum pra comida, mas de que jeito. Tenho sentido um aperto aqui – bateu no peito – pois meu filho era doentinho, desde nascido. A mãe foi simbora e a vó me ajudou, mas a gente passava muita fome e não tinha como cuidar dele. Vim aqui pra ver se mudava essa vida miserável e olha no que deu – falava Ramão com a voz entrecortada, deixando ver uma furtiva lágrima que limpou com a palma da mão calosa.
- Eu fico me lembrando do tiro que dei naquele maldito lá. Eu não queria matar ninguém, ele devia ter filho, mãe, pai, mulher que devem tá chorando o infeliz, mas era nóis ou ele. Deus me perdoe, eu nunca fui bandido, nunca matei ninguém, explicava-se Vilmarino aos companheiros.
- Fico pensando em pedir notícia de lá, mas e se algum desses aqui é comparsa dessa gente, ouvi dizer que eles têm gente na polícia, e aí vão lá fazer mal pra eles para se vingar de mim – gesticulava Ramão enquanto ia tecendo as suas dúvidas e anseios.
Demétrio que ouvia os dois calados, perguntou:
- E esse tal de Seu Nivaldo, que te socorreu e tu disse que parecia ser um homem bom, não te ajudaria?
- Mas o diacho do homem sumiu, nunca mais soube dele, respondeu Ramão.
- Não, homi, mas aqui só pedindo pra falar com alguém, não pode visita, tu não ouviu a explicação? Porque a gente tá escondido. Tu tem que pedir pra falar com ele.
- Ele nem deve se lembrar de mim. Essa gente rica é tudo assim, depois que consegue o que quer, descarta.
- Não tens outra saída, Ramão, tenta, se ele não te ajudar paciência.
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Nivaldo ergueu-se e abraçou Ramão, como se estivesse encontrando um velho amigo, pois sentiu a fragilidade daquele homem ali, solitário e carente de amparo e proteção.
- Que bom te ver e comprovar o acerto da decisão tomada naquele dia em que te deixaste apresentar na delegacia. Estás vivo e vais sair dessa, tenha confiança na justiça.
- É..., bem não to seu Nivaldo. Aqui preso, sem saber dos meus, sem poder tocar a vida.
- É um tempo, apenas, isso vai passar, e tu vais voltar para a tua casa, para os teus familiares, tenha a certeza.
- Pedi pra falar com senhor, porque eu preciso muito de ajuda – e narrou a situação da sua mãe, do seu filho e da agonia diante da falta de notícias e da impossibilidade de alcançar-lhes auxílio.
- Ramão, já devias ter me chamado aqui antes, pois não se pode vir aqui senão a pedido dos abrigados, mediante muitas precauções. Pensei muitas vezes em vocês, mas aguardava o contato. Também, tive muitas lutas nesses meses, e outra hora posso te contar. Diga, como encontro tua mãezinha?
A explicação era precária, pois o lugar era no interior do Piauí, tinha uma designação apenas da localidade, mas não chegava correio, nem qualquer tipo de comunicação. Com nomes de pessoas conhecidas que podiam ajudar, alguns apenas com apelido, Nivaldo saiu do abrigo com a determinação de socorrer aquelas almas em tamanha necessidade.
Chegando em casa, encontrou Nice, na qual a barriga de cinco meses já estava aparecendo. Estranhamente ela se alojara na fazenda de Antonio Cesar, restando para os pais, até certo ponto, inexplicável o “sequestro” e as ameaças do dia da prisão de Antonio. Fernanda e Nivaldo conversaram muito sobre o fato, mas negavam-se a admitir que poderiam estar sendo enganados pela filha.
- Como estão vocês, minha filha?
- Nem me fale, pai! Não pensei que uma gravidez fosse tão difícil. Eu tenho enjôos e ... – correu na direção do banheiro.
Nanda socorreu a filha enquanto o marido se acomodava na grande varanda da fazenda olhando o horizonte.
Dias difíceis aqueles. A morte de Valdinho lançara uma sombra nas suas vidas, a filha em um relacionamento perigoso, pois Antonio foi preso com cocaína em grande quantidade no helicóptero o que revelou ser o trabalho em regime análogo à escravidão somente uma ponta da organização criminosa chefiada por ele.
Nice e a mãe voltaram interrompendo os seus pensamentos.
- Você sabe daqueles infelizes que denunciaram o Antonio, pai, e que você acolheu aqui?
- Nice, não foi bem assim, eu entreguei um deles à polícia, como todo o cidadão de bem faz ao saber de um crime.
- Desgraçados! Ainda vão pagar pelo que fizeram.
- Minha filha, interveio Nanda, esse ódio, essas falas amargas fazem mal a você e ao seu filho, não alimente isso.
- Claro, imagina se você não vai ficar ao lado dos “pobrezinhos” ripostou a moça em tom de deboche, enquanto corria novamente para o banheiro.
- Valdo, ela está cada vez pior, mais irritada, mais nervosa, tenho receio pelo nosso neto, e eu não consigo acalmá-la, já recomendei até uma consulta psicológica, mas ela não me escuta.
- Convide-a para se mudar para cá, meu bem, talvez nesse ambiente do nosso lar o auxílio seja mais eficaz.
- Já fiz isso, mas ela resiste. Também não gosto desse brutamontes que a acompanha sempre. Ela diz que é para segurança, pois o Antonio Cesar tem muitos inimigos. Que situação...!
Nice, já refeita, voltou a indagar o pai: – Você não sabe mesmo onde estão aqueles homens, pai?
- Qual o seu interesse nisso, filha? Eu não sei e não estou interessado também, isso é um caso para a justiça, disfarçou Nivaldo, querendo encerrar o assunto.
- Quero saber, afinal isso tem a ver com os negócios que agora estão nas minhas mãos.
Nivaldo sentiu um choque e encarou fixamente a filha.
- De que negócios você está falando? Você não está envolvida em situações ilegais, não é filha?
- Pai, sossega! Estou falando das plantações, da fazenda, agora nem querendo eu poderia fazer qualquer coisa à margem da lei, estou com todos os olhos sobre mim. Se quiseres olhar a contabilidade, os registros da “Andorinhas” podes fazer, até é bom para me ajudares.
- Você é adulta, Nice, e sabes o que fazes, não vou me envolver nos negócios do seu companheiro, apenas te advirto para manter os olhos abertos e não se deixar arrastar para o crime, como teu irmão.
Nice balançou a cabeça e se afastou na direção da saída, para ir embora, como sempre fazia quando o assunto tomava rumo que não a agradava.
Referência:
[1] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (Portuguese Edition) (p. 133). FEB Publisher. Edição do Kindle.
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