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A coragem para ser bom - cap. 17




A vingança é uma inspiração tanto mais funesta, quanto tem por companheiras assíduas a falsidade e a baixeza. Com efeito, aquele que se entrega a essa fatal e cega paixão quase nunca se vinga a céu aberto. Quando é ele o mais forte, cai qual fera sobre o outro a quem chama seu inimigo, desde que a presença deste último lhe inflame a paixão, a cólera, o ódio. Porém, as mais das vezes assume aparências hipócritas, ocultando nas profundezas do coração os maus sentimentos que o animam.[1]

 

Ramão manejava a foice com violência contra o capim alto.

- Desgraça, desgraça, desgraça!

- O que há com você, homem de Deus? Por que essa fúria?

Nice estava parada, observando aquela descarga de sentimentos, quando decidiu interromper.

- Nada, não dona. Só estou desabafando pra não explodir. 

- Sente-se um pouco aqui - disse apontando um dos tocos de árvores - vamos conversar Ramão, pode lhe fazer bem.

A dissimulação da interlocutora foi de pronto percebida por aquele homem rude, no qual os sofrimentos por que passara desenvolveram uma desconfiança com tudo e todos. A mão tamborilava no cabo da foice apoiada no chão, enquanto media a mulher com o olhar. O coração acelerou o ritmo e o suor que já banhava o corpo pelo esforço do trabalho se avolumou, empapando as roupas e se tornando gélido. Se Ramão tivesse a faculdade da vidência veria a entidade sombria que se justapunha a ele, assenhoreando-se do seu centro de forças coronário para comandar-lhe os pensamentos. Não via, mas sentia os impulsos com um grau bem rudimentar de percepção extra-sensorial.

- Fale, dona Nice, não preciso sentar, estou lhe ouvindo.

- Sei do acontecido com sua família e imagino a sua dor.

- Tenho dor, não, dona, tenho ódio – retrucou Ramão com os olhos injetados e a avalanche de sentimentos aumentada pelo infeliz Espírito a influenciá-lo.

Nice percebeu o terreno fértil para lançar a ideia agasalhada por tanto tempo.

- Entendo Ramão. Também vivo o mesmo inferno que trazes contigo.

- De que jeito? Sua família está bem, a dona é rica, nem sabe o que é “passa” aperto.

- Você sabe de quem é a culpa de tudo isso, não sabe? Meu irmão foi morto, eu estou envolvida com coisas não escolhidas por mim, vivo ameaçada por aquele monstro. Penso que enquanto ele viver nunca estaremos em paz, Ramão.

- A dona fala do seu marido?

- Não é meu marido, infelizmente tenho um filho dele, só isso.

Nice alterava significativamente a expressão do rosto e da voz, denunciando um transe superficial, interpretando o pensamento dos Espíritos que promoviam aquelas sensações acalentadas por ambos os interlocutores.

- Ele está preso, vai pagar por tudo, falou Ramão olhando para o céu e tirando o chapéu num gesto típico de expressar a confiança em Deus.

- “Hahaha”! - A gargalhada ecoou e feriu o tímpano de Ramão – Isso é o que você pensa, retrucou Nice. - Daqui a pouco ele estará livre, fora do país, você não conhece esse mundo onde o dinheiro é capaz de comprar tudo.

- Tem muitas provas contra ele, dona. O doutor me disse.

- Tem sim. Ele vai ser condenado? Vai, mas vai ficar preso? Claro que não. De alguma maneira ele vai fugir, ser resgatado e aí, Ramão, sabe quem ele vai procurar primeiro e cobrar a dívida?

Ramão arregalou os olhos e a respiração se acelerou mais.

- Você - a mulher apontava o dedo indicador para o pobre homem em pânico – Você!

- Mas, mas, mas... – Ramão sentia uma espécie de labareda subir pelo seu corpo, um zumbido na cabeça, não conseguia raciocinar, enquanto ela falava sem parar.

- Você não está a salvo, não, embora a polícia tenha te dito isso. Foste julgado, absolvido da imputação do assassinato dos capangas de Antonio Cesar, mas a turma deles não perdoa. Não te mataram ainda para não agravar a situação do chefe preso.

Ramão deixou a foice cair ao chão e foi escorregando para um toco de árvore onde sentou com a cabeça entre as mãos, o cérebro parecendo estourar.

- Desgraça, desgraça!

- Não precisas ficar assim, homem, tem uma saída.

- Tenho, preciso ir embora daqui – ergueu-se e fez menção de correr.

- Não faça isso! – falou Nice em tom impositivo – Eles te acham até no inferno.

No inferno, no inferno, no inferno, as palavras martelavam-lhe a cabeça, como se já não vivesse um inferno, sempre o inferno, a fome, a prisão, a morte – sempre o inferno.

- Vamos resolver isso Ramão.


Referência:

[1] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (p. 198). FEB Publisher. Edição do Kindle.

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