A coragem para ser bom - cap. 21
Os pais são responsáveis pelo transviamento de um filho que envereda pela senda do mal, apesar dos cuidados que lhe dispensaram? “Não, mas quanto piores forem as propensões do filho, tanto mais pesada é a tarefa e tanto maior o mérito dos pais, se conseguirem desviá-lo do mau caminho.”
O burburinho se instalou na fazenda, os policiais vasculhavam tudo. Nivaldo estava atônito e sem conseguir articular palavra deixou-se cair na poltrona ao ler o mandado de busca e apreensão constatando estar ali escrito o nome da sua propriedade como alvo da operação. Era doloroso ver a forma como os agentes retiravam as gavetas, virando-as no chão, revirando almofadas, invadindo os quartos, rasgando colchões, abrindo armários, sem falar nos galpões onde os cereais estocados foram remexidos e inutilizados em grande parte na busca.
O Delegado Acádio, seu conhecido de tempos e com quem muitas vezes trocou ideias sobre as suspeitas dos crimes cometidos na região, tentou justificar-se, mas não podia impedir as ações. A presença de Nice na casa, suas relações com Antonio Cezar, e com os demais associados a ele, colocou a família na mira das autoridades.
A devassa se estendeu pelo dia todo e quando os policiais se retiraram, após nada de suspeito ou comprometedor ser encontrado, a fazenda era um pandemônio, nenhum cômodo foi poupado. Nivaldo e Fernanda já haviam enfrentado muitos momentos difíceis durante a vida, embora o abatimento inicial e a indignação reuniram os empregados, deram as satisfações possíveis e começaram o trabalho de reorganização da propriedade.
- Essa corja corrupta! Estão querendo mais dinheiro – resmungava Nice – enquanto Gaspar observava-a apreensivo, aguardando ordens.
- Vá falar com seu patrão, não quero esses “tiras” entrando na casa dos meus pais. Ele que aumente a oferta para acalmar os ânimos dessa gente.
- Dona Nice, não tenho mais acesso ao seu Antonio, ele foi posto incomunicável, acho que devido a essa operação de hoje.
- Chame Lázarus, como advogado ele não pode ser impedido de entrar e falar com o cliente dele.
Gaspar aproximou-se mais do leito onde Nice cumpria o seu repouso e mostrou na tela do celular a inscrição: “A Andorinhas está limpa.”
Nice sabia, pois a remoção de todos os indícios da mão de obra análoga à escravidão, assim como do refino de “coca” nas dependências subterrâneas da “Andorinhas”, merecera minuciosos trabalho para dar sumiço em evidências. A notícia não causou nenhuma emoção ou reação na moça que permanecia com cenho franzido, revelando a sua inconformidade com a situação.
Acádio antes de se retirar, encerrando a busca, conversou com Nivaldo e referiu-se à surpresa por não ter encontrado nada comprometedor na fazenda de Antonio Cezar.
- Impossível essa falta de evidência do crime. O homem foi preso com muita droga e não se encontra qualquer vestígio da operação desenvolvida pela gangue. Sua filha está metida até a alma nisso, Nivaldo. Só não vou levá-la para interrogatório em razão da medida cautelar que vocês conseguiram devido à gravidez de risco. Quer saber? O maior risco aqui é a sua filha, meu amigo.
Nivaldo silenciou, estava envergonhado e dividido. Tinha a certeza de que havia crime sendo cometido debaixo do seu nariz, mas estava de mãos atadas, pois não tinha provas e se as tivesse como entregar a própria filha para ser levada à prisão? A lei dava-lhe essa prerrogativa de se omitir de noticiar o crime.
Ademais, Nice estava impedida de sair do leito, sob pena de ter um aborto e como ele, nesse momento, traria mais desconforto à filha e ao neto? Não podia. Nas suas orações rogava a Deus proteção a sua família e paciência para aguardar os desdobramentos do inquérito e processos abertos sobre o caso.
A pressão psicológica exercida por Antonio Cezar e seus cúmplices sobre Nice fizeram-na desenvolver ojeriza em relação às ações criminosas com as quais tinha envolvimento. Aquela alma já abrandara bem mais o instinto criminoso do passado, muito em razão das noções espíritas, compartilhadas pela família. Não tinha boa índole, é verdade, mas daí a tornar-se chefe de tráfico com todo o cortejo de atrocidades que o empreendimento produz se tornava a cada dia mais intolerável para ela.
Até mesmo a morte de Antonio Cezar, encomendada a Ramão, já fora descartada por ela, depois que o cúmplice veio dizer-lhe que não cumpriria o combinado, devolvendo o adiantamento recebido. Primeiramente, esbravejou, chamou-o de covarde, mas no fundo ficou aliviada por não dar sequência a tão sórdido plano. Pensava, no entanto, como se livraria do pai de seu filho sem a prática de crime.
- Como você está Nice? Espero que essa agitação de hoje não crie mais complicações para a saúde de vocês os dois.
- Pai, eu quero ir à imprensa e denunciar esse abuso da polícia. Não encontraram nada. Qual a acusação que pesa sobre nós? Somos acusados de quê? Eu, por certo, de ter engravidado de um traficante, mas isso é crime? E você e a mãe por serem meus pais? Eu não aceito isso - bateu com o punho fechado na cama, várias vezes – não aceito.
- Não vamos chamar a atenção sobre o fato - respondeu Nivaldo - seremos discretos. Eu confio na justiça humana e na justiça divina. Vamos retirar disso a melhor lição, e a primeira delas, Nice, é impedir essa gente ligada ao Antonio de entrar aqui nessa casa. Nivaldo sabia que aquela cena era um disfarce da filha para justificar-se ante ele. Ela não iria jamais fazer um escândalo público, para chamar atenção sobre si e suas atividades.
- Pai, eu administro os negócios da Andorinhas, como não vou falar com os empregados, se eles não podem vir aqui eu terei que voltar para lá e vocês não querem.
Tem que haver um jeito, mas o convívio com essas pessoas nos colocam sob suspeita e isso tem que parar.
- Faltam apenas seis semanas para o nascimento do meu filho. Segura um pouco a tua ansiedade, pai, e logo depois do nascimento eu volto para a Andorinhas e vocês ficam livres dessa questão toda.
- Não queremos nos livrar de você, filha, muito menos do nosso neto, mas precisamos resolver esse impasse. Você precisa me contar a verdade, que negócios estão por detrás da fachada da fazenda As Andorinhas?
Sentindo que o assunto estava adentrando um terreno perigoso para ela, Nice soltou um gemido, levando a mão ao ventre, simulando a dor que absolutamente não sentia, provocando a preocupação do pai, o chamado para o médico, encerrando desse modo as explicações que não queria ou não podia dar.
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