A coragem para ser bom - cap. 22
O meio em que certos homens se acham colocados não constitui para eles a fonte principal de muitos vícios e crimes? “Sim, mas ainda aí há uma prova que o Espírito escolheu, quando em liberdade. Ele quis se expor à tentação para ter o mérito da resistência.”[1]
Gaspar saiu nervoso da fazenda de Nivaldo, pois o cerco às atividades criminosas estava se fechando. Embora sem ter descoberto indícios ou provas nessa primeira investida ele sabia que estavam sendo monitorados e mais dia, menos dia, chegariam até eles.
O que ninguém suspeitava, até então, era a condição de Antonio Cezar. Ele era tão somente um testa de ferro do verdadeiro chefe da organização, aquele que detinha todos os poderes e estava mais perto do que se imaginava.
A caminhonete blindada adentrou o pátio da fazenda “As Andorinhas” e um homem se encaminhou para o interior da casa. Fora por pouco, muito pouco. Respirou profundamente, olhou em torno, sentiu o ar preso no peito e a dificuldade de relaxamento e oxigenação necessária. Parou nos primeiros degraus da entrada e chamou:
- Gaspar!
- Aqui chefe. É, eles remexeram em tudo mesmo. Nosso contato trabalhou bem. Não fosse isso estaríamos em maus lençóis.
- Mas não podemos afrouxar a vigilância, essa gente não é confiável. Tens vigiado a casa dele? Policial corrupto é um mal necessário, mas eles são como escorpiões, picam a si mesmos se necessário for. São bandidos infiltrados, não possuem ética, como nós, ou melhor, são piores ainda porque se ocultam sob o manto da legitimidade para cometer crimes. Daqui a pouco teremos de apagá-lo, com cuidado, sem despertar suspeitas.
O “chefe” falava de um policial da equipe do Delegado Acácio que vazara a operação há alguns meses, impedindo a localização do cativeiro onde Ramão e os demais estiveram. Quando a polícia estourou o local de refino de cocaína os vestígios dos crimes ali praticados já haviam sumido.
- E a nossa aprendiz de “chefe”, ainda muito irritada? - indagou o chefe - mulheres são difíceis de lidar, mas quando são cruéis, se tornam o melhor material numa quadrilha. Vamos ter paciência, ela parece ter potencial.
As baforadas do cachimbo cubano subiam inundando o ambiente do cheiro forte e adocicado, enquanto o riso abafado sucedia as palavras cheias de fel e perversidade.
- Está furiosa com a invasão da casa dos pais, quer que aumentemos o “arreglo” para deixarem os pais em paz.
- Essa mulher não entendeu que aqui não tem “banda podre” na polícia, Gaspar, é um só e ele não tem como impedir nada. Ela que se acomode ou vai ter... vai ter... já estou ficando cheio com essas cobranças. Se eu pudesse despachar toda essa gente, mas não posso, preciso deles ainda.
- O Antonio Cezar não tem qualquer autoridade sobre ela, é um fraco – ajuntou Gaspar para adular o chefe.
- Esse é outro que já está se tornando estorvo na organização. Vamos mantê-lo como distração para a polícia, enquanto correm atrás dele nós vamos pensando as futuras estratégias.
Os criminosos não sabiam que toda aquela conversa estava sendo acompanhada, atentamente, por alguém de quem eles nem desconfiavam. E tinham razão, mulheres são difíceis de lidar.
Quando o chefe se retirou da casa, olhos atentos o vigiavam, pois ao seguir Gaspar a polícia surpreendeu a inusitada visita à fazenda As Andorinhas. O criminoso sempre deixa pistas. O crime sendo uma subversão da ordem natural das coisas não se enquadra nos moldes de planejamento e execuções perfeitas, pois perfeição só existe na busca da prática do bem.
Gaspar ficou refletindo nas palavras ditas pelo chefe e mesmo sabendo como eram superficiais e desprovidas de quaisquer sentimentos nobres as relações no mundo do crime, ficara incomodado com a frieza como eram tratados os comparsas, eram como objetos, coisas que podiam ser descartadas a qualquer momento. Muitas vezes pensava no caminho tomado, nas escolhas feitas e se perguntava o que conseguira naquela vida de crimes. Tinha somente algum dinheiro junto, não possuía bens em seu nome para não chamar a atenção. Sua rotina era ser o guardião de Nice, dia e noite. Não tinha vida própria, não constituíra família, não tinha filhos, pois não queria arrastar ninguém para as incertezas que o cercavam. A vida miserável na infância, a mãe que vendia o corpo por alguns trocados nos becos sujos do bairro onde viviam e trazer algo para matar a fome dele e dos seus cinco irmãos foi o motivo para ir buscar no crime aquilo que não soubera ter de outras maneiras. Sua mãe contraíra AIDS e não fazendo o tratamento de forma adequada deixou órfãos os seis filhos. Gaspar e os irmãos foram para abrigos, de onde ele saiu adotado por um casal, e essa adoção se revelou um tormento, pois eles o exploravam, sexualmente, para satisfazerem suas taras. Fugiu tão logo pode e aceitou a mão estendida do crime. Por vezes, sentia saudade da época em que sentia fome e frio, mas não era um criminoso.
Quando deu por si estava com o rosto molhado de lágrimas. Balançou a cabeça e se levantou.
- Te apruma homem. E essa agora de se debulhar em lágrimas – estapeou-se, como se estivesse infligindo-se uma punição e foi dormir.
Os Espíritos familiares aproveitam sempre os momentos em que a sensibilidade de seus pupilos está mais aflorada. A catarse mental de Gaspar, lembrando as dores sofridas, a infância e a figura materna infeliz e frágil abriram-lhe alguns sulcos na emotividade, facultando que Dinah Rocha e sua equipe de servidoras do bem viessem cuidar desses embriões de sentimentos aguardando, em algum tempo, a germinação naquele solo calcinado de um coração sem cultivo.
Aquela era uma noite com muitas atividades firmadas para o ajuste de laços familiares, começando pela aproximação da mãe de Gaspar. Depois de tantos anos de sofrimento e rebeldia, vagando por regiões espirituais de sofrimento, Raquel se deixou resgatar pelas falanges de Sepé e foi colocada aos cuidados da amorável equipe da Irmã Dinah, preparando-se para o renascimento em busca de novas chances de evolução. A sua condição evolutiva não permitia, ainda, muitas decisões sobre o planejamento reencarnatório, sendo tutelada diretamente pelo Venerando Cacique a quem eram submetidas as diretrizes do iminente retorno ao corpo físico. Antes, porém, ela visitaria Gaspar, durante o sono para ativar-lhe as noções de laços de família e maternidade pouco cuidadas durante a vida atual, mas existentes e preparadas quando da reencarnação.
Referência:
[1] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos (Portuguese Edition) (p. 351). FEB Publisher. Edição do Kindle.q.644.
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