A coragem para ser bom - cap. 24
Bem-aventurados os aflitos pode então traduzir-se assim: Bem-aventurados os que têm ocasião de provar sua fé, sua firmeza, sua perseverança e sua submissão à vontade de Deus, porque terão centuplicada a alegria que lhes falta na Terra, porque depois do labor virá o repouso. – Lacordaire. (Havre, 1863.)[1]
Era impossível se mexer. As mãos e os pés amarrados fortemente impediam qualquer movimento. A mordaça bem apertada e os olhos vendados completavam a imobilização e impediam qualquer forma de libertação e pedido de ajuda. A cabeça doía muito pela pancada recebida. Não tinha o que fazer. As cenas da agressão voltaram-lhe à mente. Estava sentado na varanda da fazenda quando teve a sensação de ver alguns vultos se moverem no bosque diante da casa. Levantou-se e fez menção de entrar, quando sentiu o golpe na cabeça e tudo escureceu. Agora despertava naquela situação. Onde estaria? O que tinham feito com Fernanda e os demais empregados da fazenda? Quem o atacara assim? E Nice? Será que fizeram algum mal a sua filha e ao seu neto? A avalanche de indagações e sentimentos se avolumava sem respostas. Nivaldo respirou o mais profundamente que pode e buscou o recurso mais eficiente que conhecia para superar os momentos de intensa aflição: a prece.
Relaxou o quanto possível a tensão muscular e recordou os benfeitores amigos que sabia estarem atentos às necessidades dos seus tutelados. Na tela mental visualizou a luminosidade em formato humano – era assim que pensava em Jesus – sempre. Começou a fazer a oração sentindo-se envolver naquela luz intensa e foi acalmando as suas angústias, fortalecendo a sua fé, inspirando-lhe a certeza da Providência Divina, mesmo naqueles instantes tão difíceis para ele e sua família. Quando concluiu as rogativas, as percepções tinham se ampliado e quase podia ver o espaço onde estava mesmo com a venda a cobrir-lhe os olhos, o corpo sutil desprendera-se permitindo contemplar o entorno. Era um armazém com sacas de grãos empilhados, semelhante ao da sua fazenda, mas não era em sua casa. Sentindo-se livre das amarras do corpo viu que podia afastar-se dali e transpondo as paredes olhou em torno. Reconheceu o lugar onde estava e isso causou-lhe um impacto emotivo intenso, fazendo-o internar-se novamente no corpo.
- Não, não pode ser! Devo estar delirando. O golpe na cabeça! Não pode ser.
Carlos, o amigo espiritual, aproveitando a ação da prece aumentava as capacidades perceptivas de Nivaldo, produzindo leve desdobramento em estado de vigília a fim de prepará-lo para os embates que se aproximavam. O objetivo daqueles breves momentos de emancipação da alma foi atingido. A informação que obteve era um dos elementos a ser avaliado por ele nas suas escolhas. Dali em diante seria submetido a testes mais complexos do seu propósito existencial.
Não saberia dizer quanto tempo se passou, pois experimentava um torpor que o mantinha no limite entre o estado vigil e a inconsciência. Quando recobrava a lucidez mantinha a mente emitindo vibrações de confiança e o estado de rogativa pelos seus entes queridos. Foi assim que abriu os olhos – tinham retirado a venda, a mordaça e até as cordas que o prendiam começavam a ser soltas, enquanto os homens apontavam-lhe armas. Estava escuro o local e as pessoas que o rodeavam estavam todas com máscaras.
Uma sensação que há muito não experimentava começou a dominá-lo, as mãos suarentas, um frêmito gélido no rosto, o coração em disparada e uma vontade de correr, fugir. Ele estava com medo. Sem racionalizar ergueu-se da cadeira e foi na direção dos encapuzados.
Dois brutamontes o imobilizaram e colocaram-no de volta e o fizeram sentar.
- Senta! Fica quieto! Se colaborar nada vai te acontecer. Nem a ti, nem aos outros.
- Outros?
- Sim, Nivaldo, tua família está aos nossos cuidados.
- O que fizeram com eles, vocês não...
- Estão bem. E continuarão, depende de ti.
- O que querem de mim?
- Algo muito simples. Tu tens dificultado bastante as nossas ações, agora vais colaborar, irmão. Vamos estabelecer uma lavagem de dinheiro a partir da tua produção. Vamos abrir uma exportadora em teu nome e tu faz a parte limpinha, entendeu? Exporta, compra, vende, tens credibilidade. Nós lavamos a grana aí e tudo certinho.
Nivaldo procurava identificar a voz que conversava com ele, por detrás daquela toca ninja, mas não tinha informações na sua mente, por mais as buscasse.
- Não vou fazer isso, ninguém vai me arrastar para o crime, não sou um criminoso.
- Imaginei que dirias isso, não temos pressa. Teu pessoal está conosco, Nivaldo – esposa e filha, teus empregados. Vamos esperar. Tens 24 horas para pensar ou então vais começar a receber “presunto” – o homem acentuou a voz e chutou o pé de Nivaldo. Repuseram as vendas, a mordaça e imobilizaram-no novamente, após o quê foram embora.
As lágrimas empapavam a venda colocada nos olhos, deixando-a colada na face enquanto tentava organizar as ideias diante da tempestade a se precipitar sobre a sua família. Há muitos dias vinha tendo pesadelos onde se via desafiado a pular no abismo para salvar pessoas. Acordava molhado de suor, com o coração aos saltos e chegara mesmo a confidenciar com Fernanda esses distúrbios durante o sono. Somente readquiria relativa serenidade após o estudo do Evangelho e a prece, realizados sempre pela manhã, bem cedo. Tinha o sentimento da chegada dos mais intensos testemunhos da sua atual existência, mesmo a morte dos seus dois filhos e o envolvimento de Nice com Antonio Cezar se afiguravam menos dolorosos diante dos presságios a lhe visitarem a alma.
Referência:
[1] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (Portuguese Edition) (p. 101). FEB Publisher. Edição do Kindle.
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