A coragem para ser bom - cap. 25
Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de arrependimento.[1]
Fernanda e Nice estavam sob severa vigilância em outro local de cativeiro. Ambas não tinham informações sobre os desdobramentos daquela ação criminosa. Nice esforçava-se para entender se era alguma facção inimiga a disputar território e poder. Nem imaginava ser o chefe da quadrilha, que ela julgava comandar, o verdadeiro autor da ação. Mais uma vez o fato de envolverem os seus pais a colocou em fúria, esbravejando e fazendo ameaças aos carcereiros que a ela nem se dirigiam.
Fernanda desdobrava-se em cuidados para acalmar a filha, temendo pela saúde do bebê, pois a gravidez adentrava a semana prevista para o parto. Os vigias não as deixaram contatar o médico, apenas asseguravam a volta breve para a casa.
- Mãe, o que está acontecendo? Eles levaram o meu pai? Onde está o Gaspar, aquele inútil que não nos protegeu?
- Nice, não adianta nos desesperarmos, vamos observar tudo e nos conduzir da melhor maneira para sermos libertadas. Algo me diz, filha, que não estamos abandonadas.
- Mãe, estamos tratando com criminosos, essa gente não tem compaixão, eles matam e você sabe disto. Eu preciso falar com Antonio Cezar, ele saberá como nos tirar daqui.
- Já percebeste a nossa absoluta falta de acesso a qualquer comunicação terrena, minha filha? Nosso socorro agora virá do Alto, tenho a certeza disso – Fernanda tivera algumas visões durante os muitos instantes de oração desde a retirada a força de sua casa e a condução para aquele quarto.
Depois de uma noite insone e agitada, Nice finalmente adormecera cedendo ao cansaço e ela pode concentrar-se e mergulhar nas suas reflexões para sintonizar melhor com os anjos amigos que nunca a desampararam em momentos de dor e aflição como aqueles.
Sentiu a presença do Venerando Espírito Sepé e se deixou envolver na sua atmosfera benfeitora, recolhendo as orientações para o momento.
“- Filha a preparação para os companheiros em labuta no mundo em severas rupturas estruturais no soerguimento de uma nova era transita pela construção da capacidade de resignação, renúncia e devotamento aos propósitos de Jesus. A cada dia o mal ainda remanescente no Orbe provoca ondas de resistência, na tentativa inócua de sobrepujar o bem, requisitando aos tarefeiros do Mestre a compreensão clara dos propósitos da existência física. Se as nossas trajetórias existenciais no corpo não servirem para o aperfeiçoamento do Espírito imortal, nenhum significado existencial de profundidade terá. O Cristo não quer o nosso sofrimento, as nossas dores, mas o nosso triunfo sobre elas. Cada criatura é capaz de forjar o seu elmo de proteção tanto quanto se tornar capaz de cultivar a fé e a confiança em Deus. Somos criaturas a margem desses rios caudalosos, cujo volume cresce nas enchentes e carregam os bens materiais que temos. Estamos seguros nas margens, nas terras mais altas, porém, muitas vezes nos arrojamos nas águas para salvar as posses transitórias, comprometendo a própria vida. Assim convém lembrar estares em segurança nas mãos de Deus, mesmo que os tesouros cuidados sejam ameaçados, entrega-os ao Cuidador Excelente e ele os restituirá no tempo certo.”
Fernanda sentiu o coração de mãe, avó e esposa apertar-se, como se mil algemas o ferreteassem e as lágrimas desceram incontidas. A fala do amigo e benfeitor era tão clara dando-lhe a dimensão da renúncia que deveria fazer, confiando em Deus, incondicionalmente, embora fazendo todo o esforço para manter a família a salvo.
Quando Nice acordou, ela segurou-lhe as mãos e apenas disse:
- Filha, saiba que eu amo você com todas as forças do coração e darei a minha vida por você, se for preciso.
A força dos sentimentos, contida naquela frase, caiu na sensibilidade de Nice como um aguaceiro benfazejo em terra crestada pela seca. Há muito tempo ela não sentia uma lufada tão vigorosa de sentimentos reconfortantes. A convivência com a alma enferma de Antonio Cezar, os últimos acontecimentos após a morte de Valdinho foram endurecendo-a, criando zonas de insensibilidade, mas naquele momento uma barreira se rompeu e ela abraçou Fernanda, pousando a cabeça no ombro da mãe, deixando o choro fluir sem represas.
- Ah, minha mãe, como eu estou arrependida de tudo o que tenho feito. Por que eu não fui forte o suficiente para lutar com essas tendências nocivas que trago comigo? Parece que tudo o que eu me proponho a fazer sempre tem um caminho escuro a me atrair, me puxar. Eu sei dos muitos adversários espirituais e encarnados a me espreitarem, mas sei também das minhas inclinações, elas são a porta por onde eles acessam a minha vontade e eu me deixo dominar.
- Minha menina querida, esse reconhecimento é um passo importante para a mudança de rumos. Tens uma chance tão bela de recomeço com a maternidade. Esses momentos trágicos e difíceis são exercícios para conferir fortaleza a nossa musculatura espiritual. Se temos de sofrer, filha, que seja por motivos nobres e não por havermos praticado o mal.
- Eu não tenho esse teu desprendimento, mãe, eu não gosto de sofrer.
- Ninguém gosta, Nice, eu mesma procuro fazer de tudo para ser feliz e viver bem, mas o esforço para crescer transita pela dor, pela necessidade de travar contato com a perversidade humana a fim de iluminar os sentimentos. Somos criaturas inferiores, quando a calmaria se estabelece nós abandonamos as lutas evolutivas e estacionamos, complacentes com os vícios, ainda não sabemos produzir nos terrenos do amor.
- Eu vou sair daqui e vou fazê-los pagarem por tudo o que nós estamos passando, eu te prometo, mãe.
- Não alimente o desejo de vingança Nice, se pudermos acionar a justiça tudo bem, mas não se deixe queimar no ódio, isso fará mal a você e ao seu filho.
- Nice silenciou. Tinha em mente o caminho a percorrer. Há algum tempo vinha se prevenindo, pois sabia estar transitando em campo minado e precisava de “cartas na manga” para o jogo sujo em que estava envolvida.
Referência:
[1] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (Portuguese Edition) (p. 116). FEB Publisher. Edição do Kindle. Capítulo V, item 28.
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