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A coragem para ser bom - cap. 29



Nada vos pertence na Terra, nem sequer o vosso pobre corpo: a morte vos despoja dele, como de todos os bens materiais. Sois depositários e não proprietários, não vos iludais.[1]

 

O som da chave girando na porta, as malas sendo colocadas no carro e os olhos marejados de lágrimas saudosas, olhavam em volta para gravar na memória cada detalhe, cada lembrança de tudo o quanto ali viveram. Fernanda e Nivaldo abraçados, buscavam um no outro as forças para prosseguir. Outra vez estavam de partida, deixando para trás mais um ciclo de suas vidas, fortalecendo a resignação na forja dos fatos que foram pouco a pouco treinando as emoções e os sentimentos ao desapego, à resiliência com as perdas, às decepções e o convite a fortalecer a fé em Deus e a confiança no futuro.

Ali viveram os últimos anos de Valdinho, a juventude de Nice e agora partiam levando consigo o neto com apenas seis meses de idade, enquanto a mãe dele cumpria a pena de prisão a que fora condenada pelo envolvimento com o tráfico. Por recomendação de Acádio e das demais autoridades, à testa da operação que desbaratou a malha criminosa, iriam para longe, recomeçar em outro lugar evitando os respingos de ramificações porventura existentes da organização.

Foram dias difíceis em preparativos dolorosos, incluindo desde a dispensa dos colaboradores, dentre eles Ramão que voltou para a sua terra, pois embora preservado por Acádio, teve que depor para apontar os sequestradores e reconhecer, finalmente, o local do cativeiro onde esteve recluso quando atacaram os carcereiros e fugiram, tendo ele encontrado abrigo na Fazenda de Nivaldo.

A pena imputada à Nice teve o benefício da colaboração prestada pela ré, pois de algum tempo ela instalara mini-câmeras em vários locais da Fazenda das Andorinhas, onde ficaram gravadas muitas conversas e cenas, inclusive a conversa de Gaspar com “Sua Excelência”, na noite da frustrada operação de revista aquele local. O material entregue à autoridade policial serviu de base na constituição de conteúdo probatório robusto para a identificação de outros integrantes da gangue, cuja participação era até então insuspeitada.

- Nanda, outra vez estamos batendo em retirada – comentou Nivaldo com a voz trêmula - as vezes parece que o criminoso é aquele que age bem, que cumpre a lei.

- Valdo, não veja as coisas por esse lado. Nós estamos aqui com as nossas lutas e dores, mas estamos em paz. Nossos filhos perderam a vida física, mas tenho a certeza de que Valdinho e Rodrigo terão outras chances abençoadas de evoluir, e se nos mantivermos fiéis aos desígnios da Providência para todos, nós vamos poder ajudá-los de alguma forma.

- Eu sei, minha querida, sei de tudo isso, mas essas ideias têm sido frequentes e por vezes me abatem, fazendo crescer dentro de mim um misto de raiva e até autopiedade, sentimentos que julgava já ter superado, e agora tenho que fazer muito esforço para controlar.

- Lembra-te que o nosso amigo espiritual Carlos sempre alerta sobre os finais de ciclos evolutivos, quando estamos prestes a galgar um novo patamar? Ele diz que são os momentos de maior intensidade das provas, os testes mais acerbos e difíceis de vencer. Eu não sinto que isso esteja acontecendo comigo, ainda, mas talvez esteja ocorrendo com você, meu amor.

Nivaldo estava na quadra dos cinquenta anos e as torturas sofridas no cativeiro debilitaram a sua saúde, ficou com lapsos de memória e muitas vezes, parava em meio às frases com dificuldade de continuar o raciocínio, devido às lesões cerebrais decorrentes dos golpes sofridos. Como iria recomeçar tudo de novo, sentia as forças lhe faltarem. Nunca tivera medo do trabalho duro, transformara terras estéreis em áreas produtivas, gerara empregos, riquezas, mas agora estava abatido, desanimado.

Fernanda percebia o estado de espírito do marido e há dias intensificava as orações, rogando forças para atravessarem mais essa quadra existencial de tamanhas exigências para a sua família. Pedira o socorro dos companheiros do Centro Espírita Luz e Paz, cujos dirigentes e trabalhadores tinham amizade e gratidão pelo casal e sua família, e sabedores da viagem agendaram um Evangelho coletivo para o qual estavam se dirigindo como último ato da sua permanência naquelas terras.

Os colaboradores daquela Casa do Caminho estavam a postos para acolher, esclarecer, consolar e orientar os amigos em horas tão sofridas. Nivaldo e Fernanda, ao adentrarem o espaço simples, onde tantas vezes desempenharam o seu labor durante os anos ali vividos, sentiram o impacto da atmosfera impregnada de eflúvios revigorantes, saturados das emanações dos corações generosos e devotados que os abraçavam. A dimensão espiritual, percebida de pronto por Fernanda e por mais uma das médiuns, dona Celeste, presente ao Evangelho, era magnífica.

A prece de abertura do Evangelho carreou para aquele abrigo de almas, energias luminosas que foram penetrando os corpos físicos e sutis dos presentes e à visão espiritual tornaram-se luminosas como se todas as ramificações da corrente sanguínea, das redes neurais estivessem eletrificadas. Todos, sem exceção, captaram também o perfume exalado no ar, originado de um fenômeno de efeitos físicos já percebido em outros momentos de trabalho naquela casa. Convidado a abrir o Evangelho segundo o Espiritismo, Nivaldo leu “Os inimigos desencarnados”.

Pode-se, portanto, contar inimigos assim entre os encarnados, como entre os desencarnados. Os inimigos do mundo invisível manifestam sua malevolência pelas obsessões e subjugações com que tanta gente se vê a braços e que representam um gênero de provações, as quais, como as outras, concorrem para o adiantamento do ser, que, por isso, as deve receber com resignação e como consequência da natureza inferior do globo terrestre. Se não houvesse homens maus na Terra, não haveria Espíritos maus ao seu derredor. Se, conseguintemente, se deve usar de benevolência com os inimigos encarnados, do mesmo modo se deve proceder com relação aos que se acham desencarnados.[2]

 

Durante a leitura aquele restrito círculo de orações protagonizou um atendimento de suprema magnitude, demonstrando a potência da vontade, da oração e da vida reta que induzem a sintonia com as esferas superiores.

O venerando Sepé e sua equipe, com as coordenações de Carlos Barbosa e Dinah Rocha, dispuseram mecanismos de transmissão daquele momento e erigiram uma redoma de vibrações para onde atraíram Plúmbeo e alguns dos seus sequazes que passaram a ouvir a leitura e os comentários seguintes por parte dos membros da reunião. A escuta era decodificada em vibrações extraídas dos elementos da fala de cada um e as alocuções denotavam tonalidade e teor de sentimentos diferenciados e também a convicção com que eram expressas.

O Espírito Mendes Ribeiro, especializando-se em auxílio à ampliação do alcance e efeito da comunicação veiculada pelos colaboradores da divulgação da Boa Nova no mundo, estimulava as regiões cerebrais dos encarnados para intensificar a liberação dos neurotransmissores que respondem pelo bem-estar e pela sensação de felicidade, modulando assim as manifestações sobre a lição, dando-lhes a força de transmitir aos ouvintes esses estados de alma, a fim de fazê-los experimentarem sensações de há muito esquecidas, como terapêutica de avivamento da condição divina da qual se distanciaram ao longo do tempo de perversidades e crimes.

Cada apreciação sobre a página evangélica funcionava à guisa de poção medicamentosa a se inocular na estrutura perispiritual dos Espíritos ali resgatados, abrandando a rebeldia e fazendo-os por fim adormecerem para a condução ao processo de reencarnação imediato e compulsório.

Exceto Fernanda e dona Celeste os demais não perceberam os detalhes do trabalho realizado pela Espiritualidade naqueles momentos, mas todos se sentiram reconfortados, felizes, aliviados e confiantes. Nivaldo não conteve as lágrimas e chorou copiosamente como se estivesse fazendo uma higienização dos miasmas que os últimos fatos deixaram na sua emotividade. Estava enfim consolado.

Antes da prece de encerramento o respeitável amigo Carlos, utilizando-se da mediunidade de Celeste trouxe ao grupo palavras de estímulo e consolo, lembrando que os verdadeiros cristãos são as cartas vivas do Evangelho e onde estiverem levam consigo o dever de anunciar a Boa Nova aos corações em sofrimento. Recordou Paulo de Tarso, o inesquecível apóstolo, desbravando as impiedades dos corações humanos para que o Cristo fosse conhecido e falou das benesses a aguardarem os leais servidores do Reino na vida futura. Foi a única comunicação veiculada no momento.

Aquele encontro singular, na simplicidade de uma reunião de estudo do Evangelho, traduzia a grandeza dos primeiros grupamentos cristãos, onde os altares dos corações se abriam para acolher a majestade do Alto em toda a sua nobreza, sem práticas místicas, sem laivos de intelectualidade, tal qual o Mestre de Nazaré o fazia e ensinava aos seus discípulos.



Referências:

[1]KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo (p. 266). FEB Publisher. Edição do Kindle. Capítulo XVI, item 14.

[2] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (p. 195). FEB Publisher. Edição do Kindle. Cap. XII, item 6.

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