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A coragem para ser bom - cap. 30




Bem-aventurados os aflitos pode então traduzir-se assim: Bem-aventurados os que têm ocasião de provar sua fé, sua firmeza, sua perseverança e sua submissão à vontade de Deus, porque terão centuplicada a alegria que lhes falta na Terra, porque depois do labor virá o repouso. – Lacordaire. (Havre, 1863.)[1]

 

- Tchau mamãe!

- Tchau Nandinho, mas eu já disse que sou vovó. A mamãe em breve estará conosco.

- Não, minha mãe é você.

- A professora olhava divertida aquele diálogo entre a vó aflita que tentava persuadir o neto da realidade que ele se recusava aceitar.

- Dona Fernanda, não adianta ele só a chama de mãe.

- Professora! Eu fico preocupada com isso. Em breve a mãe dele deve chegar e eu não quero que ela pense que eu me apropriei do filho dela. Ela vai precisar muito dele para recomeçar a vida.

- Pois é dona Fernanda isso deve ser coisa de outras vidas. Eu não entendo muito, mas a senhora sim.

- Ah! Profe, as vezes temos reminiscências, lembranças, sabe? Mas a nossa vida é essa, de agora, e o Nandinho é filho da minha filha, mas vamos lá que eu já estou atrasada para ajudar o Nivaldo na loja.

Seis anos transcorreram rápido. Nivaldo com as economias que sobraram após pagar os advogados que trabalharam no processo de Nice iniciou um negócio de venda de sementes, adubos, insumos relacionados à terra e que ele conhecia bastante, pois não se sentia mais com forças para empreender no agronegócio. Iniciou uma loja pequena, mas como em tudo o que ele colocava a mão, o negócio cresceu e poderia ter se expandido, porém em conversa com Fernanda decidiram limitar as suas atividades e se dedicarem a fundação de um centro espírita, inexistente naquela região.

O preconceito em relação ao Espiritismo era intenso e a intolerância religiosa os perseguiu por longo tempo, até que o caráter e a bondade daqueles corações lapidados na dor e nas lutas foram cativando alguns moradores que se encantaram pela beleza da mensagem espírita. O Grupo estava hoje com quase dez trabalhadores e mais de trinta estudantes, isso era considerado um feito naquelas paragens.

O padre antigo da comunidade, opositor ferrenho do Espiritismo, desencarnou e o novo pároco era uma alma branda, dócil, amigo de Nivaldo com quem conversava bastante sobre as convicções espíritas, tendo inclusive aceitado o presente de um exemplar de O Livro dos Espíritos, não sem antes fazer Nivaldo prometer: “Se eu for para o inferno tu não me deixas lá.”

Foi assim que Nice encontrou seus pais e o filho ao deixar a prisão após o cumprimento da sua pena.

A mulher que desceu do táxi e ficou contemplando a casa, depositando a diminuta mala no chão, fisicamente, em nada mudara. Fernanda há horas cuidava pela janela, aguardando aquele momento. Queriam, ela e Nivaldo, viajar e buscar a filha na saída da penitenciária, com o que ela se opôs de maneira veemente. Não queria que os pais a vissem saindo da prisão. Nunca permitiu visitas, apenas enviava e recebia cartas e as fotos de Nandinho, a quem proibira de levar na prisão. Eles sofreram muito com essa atitude da filha, pois foram seis anos de saudade, sem poder abraçá-la, vê-la, fazendo um telefonema ou outro, porque ela quase nunca os atendia.

Agora a filha estava ali, Nivaldo estava na loja, não aguentou a ansiedade da espera e Nandinho, na escola.

- Filha, minha filha, que saudade! Tu não tens ideia do que passamos nesses anos todos afastados de ti, meu amor – Fernanda correu ao encontro da filha, e parecia que a distância se multiplicava, tal a ansiedade que a dominava.

Nice se deixou abraçar e então Fernanda percebeu a dureza, a tensão revelada naqueles braços que a enlaçavam, mas não a abraçavam, a mesma rigidez estava expressa no olhar. Os olhos lindos da sua filha não tinham brilho, estavam opacos, como se estivessem mortos. Um calafrio percorreu o corpo de Nice que se manteve firme.

- Mãe onde está o meu pai e o Fernando?

- Vou chamar o teu pai, minha filha, ele estava aqui, mas não aguentou a aflição da espera e foi para a loja tentar espairecer no trabalho e Nandinho está na escola, ele já está no “pré”, sabes? Podemos ir buscá-lo.

Nice parecia estar em outro mundo, não esboçava reação nem demonstrava emoção, apenas uma indiferença que a sensibilidade de Fernanda captava com muita dor, enquanto ligava para Nivaldo, que inquieto já retornava e estava parado à porta, perplexo, contemplando a filha.

- Nice, minha menina! Minha filha!

Nice não se moveu do lugar onde estava, apenas aguardou o pai chegar e puxá-la para um abraço, que também não conseguia corresponder.

- Pai, mãe, eu preciso falar com vocês, vim até aqui só por isso e é bom que o Fernando não esteja em casa, isso é providencial.

Nice com muita frieza foi descrevendo aos pais o inferno vivido na prisão, o quanto sofrera de humilhações, sevícias e se tornara uma criatura fria, dura para suportar os anos lá passados, se impor sobre as demais presas e resistir às mazelas do sistema. Não conseguiu superar as dores causadas para si e tinha planos muito sombrios para a sua vida, planos nos quais não queria envolver os pais e muito menos o filho.

Fernanda e Nivaldo tentaram demovê-la daquele intuito, pois embora sem saber exatamente o que ia na mente da filha, sentiam o equívoco e a terrível decisão por detrás das palavras ouvidas. Esforçaram-se em persuadi-la a um tratamento psicológico, onde pudesse curar as suas chagas, imploraram ficasse com eles, mas foi em vão. O sofrimento havia cavado um sulco profundo na alma de Nice e ela escolheu preenchê-lo com a revolta, o ódio e a vingança.

- Nice, abrace seu filho antes de partir, conheça-o, ele é uma criança doce, amorosa, quem sabe o contato com ele a faz desistir dessas ideias, ele precisa de você. Eu e seu pai já estamos envelhecidos, não vamos ficar muito tempo, você precisa cuidar dele – implorava Fernanda num esforço de resgatar a filha para um caminho menos doloroso.

- Mãe não dá mais, eu sei que a minha escolha é uma das piores possíveis, mas é a única que me mantém viva. É isso ou eu abro mão da minha vida.

Foi a última vez que Nivaldo e Fernanda tiveram notícias da filha, viva, até o dia em que receberam a visita de um conhecido seu – Lazarus, advogado da quadrilha ao tempo em que Nice comandava, ou assim pensava, comandar o bando.


Referência:

[1] Allan Kardec. O evangelho segundo o espiritismo (p. 101). FEB Publisher. Edição do Kindle. Capítulo V, item XVIII.

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