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A coragem para ser bom - cap. 8




Lembrai-vos de que, durante a vossa prova na Terra, tendes uma missão de que não suspeitais, quer vos dedicando à vossa família, quer cumprindo as diversas obrigações que Deus vos confiou. E se, no curso dessa provação, ao cumprirdes a vossa tarefa, virdes caírem sobre vós os cuidados, as inquietações e tribulações, sede fortes e corajosos para os suportar. Afrontai-os resolutos; duram pouco e vos conduzirão para junto dos amigos por quem chorais, que se alegrarão com a vossa chegada entre eles e vos estenderão os braços, a fim de guiar-vos a uma região inacessível às aflições da Terra. – François de Genève. (Bordeaux.)[1]

 

As investigações sobre o caso de Ramão e seus companheiros prosseguiram, com muitas dificuldades, pois eles não tinham informações sobre nomes, locais, documentos, mas aos poucos o quebra-cabeças foi sendo montado, apontando a responsabilidade do aliciamento de mão de obra para a Fazenda das Andorinhas – propriedade de Antonio César.  Nesse ínterim Nice estreitou, mais e mais, o relacionamento com o vizinho, sob o olhar aflito dos pais. A presença do genro na fazenda era um sofrimento para ambos, que não tinham afinidade com as conversas, ideias e ações por ele propagandeadas. Respeitavam a escolha da filha com extremo desagrado, mas resignados.

Naquela manhã a operação policial foi deflagrada e Nivaldo acordou com a Nice, gritando por ele de forma frenética – pai, pai, por favor, nos ajude a esconder o Antonio aqui, vão prendê-lo pai, ele está armado e vai trocar tiros com a polícia, pai vão matá-lo...

Ainda atordoado, terminando de se vestir, Nivaldo procurava tomar as rédeas daquelas demandas.

- Nice, sente-se aqui, você está fora de si, minha filha! Não é assim que enfrentamos essas questões, se Antonio está sendo procurado ele precisa se entregar, se ele não é culpado vai provar - afirmava Nivaldo.

- Tu não entendes, pai? Vens de novo com esse discurso? Ele não pode ser preso.

Fernanda procurava acalmar a filha, que soluçava e falava aos gritos, descontroladamente.

- Vocês estão falando do pai do meu filho. Ele vai nascer com o pai na cadeia, é isso que vocês querem?

Aquela revelação, feita de chofre, caiu de forma bombástica no ambiente, provocando um silêncio sepulcral. Nem bem se haviam refeito da notícia Antonio César surgiu, vindo dos fundos da casa, suarento, rosto avermelhado, com um rifle em punho e avançou para Nice, sendo interceptado por Nivaldo.

- Pare aí rapaz, o que pensa que está fazendo?

- Pare aí você. Tem amor a sua filhinha? Fique onde está ou ela vai pagar por isso - respondeu o facínora.

- Mas ela carrega o seu filho – gritou Fernanda.

- Filho, filho, tenho tantos por aí, eu estou pouco ligando, quero sair daqui e vocês vão ficar quietos - o olhar daquele homem tinha uma dureza que impressionou Nivaldo - se eu chegar até o campo de pouso ela está livre, ela e o netinho de vocês - falou de forma debochada.

Nivaldo não arredou pé da frente de Antonio que continuava apontando o rifle para Nice.

Nice estava atordoada, não conseguia entender como o homem com quem convivia e que julgava ter sentimentos por ela estava ali, prestes a fazê-la refém, não podia ser verdade.

Dizem que as desilusões são o esfacelamento das ilusões e podem libertar dos equívocos. Aqueles breves instantes em que era golpeada pela atitude canalha do companheiro, usando-a para escudo de fuga, abriam-lhe uma chaga profunda na emotividade. Observava o pai, tantas vezes ridicularizado por ela, na sua incompreensão com as posturas adotadas e agora estava ali arriscando a vida para protegê-la. Em segundos buscou forças e tomou a frente, quase encostando o peito no cano da arma.

- Deixa pai, isso é comigo - e olhando fixamente para Antonio, disse: - vamos, é isso que você quer? Uma refém? Pois bem, leve-me, terás dois.

Nivaldo e Fernanda sentiam uma mão firme segurando-os no mesmo lugar e sem reação viram a filha ser levada, enquanto as sirenes das viaturas policiais já se faziam ouvir próximas à fazenda.

- Não podíamos ter permitido isso Nanda... não podíamos.

- Valdo, isso é uma consequência das escolhas dela, talvez seja um despertar doloroso para a nossa filha querida, mas ela precisa. Que nossos amigos do Mundo Maior cuidem deles e encaminhem pelo melhor. Era como se eu escutasse alguém dizendo deixe-a ir, ela necessita provar da amargura que tem produzido. Estou sofrendo muito – dizia Fernanda com os olhos cheios de lágrimas – mas precisamos nos manter fortes, isso recém começou.

- Falando nisso, cadê o Valdinho? Desde ontem eu não o vejo.

Os policiais chegaram e o comandante da operação, respeitosamente, abordou Nivaldo, pois não tinham mandado para entrar na propriedade, ela não era alvo da incursão e o seu proprietário estava colaborando com os procedimentos desde o início. O dono da casa se adiantou e em breves palavras explicou a situação, a fuga de Antonio, ameaça à vida de Nice e a situação de gestante, recém noticiada a eles.

A perseguição se seguiu sem, no entanto, terem ciência de onde ficava o campo de pouso clandestino. A polícia tinha escuta autorizada das conversas de Antonio César, e um deles permaneceu na fazenda para conversar com Nivaldo.

- Tenho uma questão séria para comunicar-lhe – disse o policial.

- De que se trata, estou apavorado com a situação da minha filha nas mãos desse homem – gaguejou Nivaldo.

- Seu filho, senhor, há indícios de que seja um dos integrantes dessa quadrilha de aliciadores para o trabalho em regime de escravidão.

Nivaldo levou a mão ao peito e sentiu a respiração faltar-lhe. Uma dor intensa fez com que se curvasse – era uma sobrecarga emocional intensa em tão pouco tempo. Parecia ter sido jogado em um turbilhão de onde não conseguia sair. Fechou os olhos como se buscasse apagar tamanho sofrimento, ganhar forças para enfrentar a tempestade a se precipitar sobre a sua família.

Fernanda gritou pelos empregados. Augusto estava aparvalhado com tudo o que se passava. As auxiliares da sede da fazenda acorreram para socorrer os patrões, enquanto o médico da família era chamado.

A falange espiritual estava a postos para o auxílio à prova solicitada por Nivaldo, aguardando as escolhas a serem feitas e disponibilizando os acessos aos recursos da resignação e integridade se tais fossem os caminhos seguidos pelos tutelados.

Nivaldo se debatia interiormente para manter-se fiel aos princípios esposados. Tinha o ímpeto de armar-se e ir atrás de Antonio para libertar a filha, mesmo arriscando a própria vida. Tinha uma habilidade ímpar como atirador, desenvolvera isso em outros tempos, como meio de proteção, era o que achava, mas depois compreendeu não ser esse o caminho para viver em paz. Há anos não tocava em uma arma, mas sabia atirar e a tentação de resolver o conflito de forma violenta se avolumava dentro dele, em contraponto ao apelo consciencial para confiar em Deus e nas autoridades envolvidas no fato. Essa contenda íntima foi suficiente para fissurar-lhe, fisicamente, o tecido cardíaco. As suspeitas sobre Valdinho, apesar do desgosto provocado, sinceramente, não podiam se dizer surpreendido com a possibilidade. De há muito analisava os pendores do filho e mesmo sem saber dos fatos concretos adivinhava-o envolvido em alguma coisa ilegal e muito séria.

Após o diagnóstico prévio, o médico recomendou a remoção para o hospital que o colocou, temporariamente, alheio aos fatos que se desdobraram, dolorosamente, naquele dia.


Referência:

[1] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo (Portuguese Edition) (pp. 92-93). FEB Publisher. Edição do Kindle. “Bem-Aventurados os aflitos”. Item 25

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