A função paterna
Um outro conceito muito importante em Winnicott é o de função paterna, que tem como característica mais marcante a apresentação da realidade. Novamente, aqui, função paterna nada tem a ver com o sexo, ou seja, tanto um homem como uma mulher podem ter, e se espera que tenham desenvolvido dentro de si essa função que diz respeito à capacidade de perceber a realidade em si mesma.
Seriam incluídas as funções paternas, complementando as funções da mãe e a função da família, com sua maneira cada vez mais complexa (à medida que a criança fica mais velha) de introduzir o princípio de realidade, ao mesmo tempo que devolve a criança à criança.
(Winnicott D. (2021) Tudo começa em casa. São Paulo. Ubu Editora, pág. 22)
Alguns autores, mais recentemente, como a psicanalista Letícia Fiorini (2014), preferem chamar de “função terceira”, exatamente para desvincular da ideia de gênero. A noção de terceiro tem a ver com esse alguém que promove a quebra de uma fusão simbiótica no vínculo. Mesmo uma mãe que tenha uma relação de profunda simbiose, necessária para o desenvolvimento de seu filho, ou filha, em algum momento precisará ter além de si mesma e de seu bebê, essa função terceira, como por exemplo no momento de desmamar o lactente. Em determinada idade, ou momento do crescimento, o bebê deve abandonar o seio da mãe, ser desmamado, para poder crescer, vivenciar novas possibilidades em seu desenvolvimento. A mãe deve ter dentro de si essa função terceira para conseguir realizar isso, assim como em outras circunstâncias da relação com seu filho(a). Muitas vezes será o pai ou uma avó, quem irá efetivar essa ação de corte para promover a quebra da simbiose e favorecer a continuidade do crescimento da criança.
Havíamos, por isso, proposto a necessidade de rever o conceito de função paterna e separá-lo de suas conotações patriarcais. Certamente, a denominação “paterna” já é suficiente para equipará-la às estruturas patriarcais, ainda que se sugira abstraí-la e considerá-la uma função de caráter estrutural. Nessa linha, sugeri denominá-la “função terceira”, que pode ser exercida por outros, incluindo a mãe com suas próprias reservas simbólicas. Isso garantia que a mãe também pudesse exercer essa função terceira e reconhecer o filho em sua alteridade. (Fiorini, Letícia. Repensando o Complexo de Édipo.
Revista Brasileira de Psicanálise. Volume 48, n. 4. 2014)
O pai de nosso estudo exerce essas duas funções, ao mesmo tempo que acolhe e abraça, posiciona-se firmemente na relação com seus filhos, principalmente com o filho mais velho que retorna revoltado com a atitude receptiva do pai em relação ao irmão, chamando-o aos fatos que envolvem o ato de consideração humana ao filho que retorna, bem como às condições de conforto e segurança que o mais velho sempre teve por permanecer sob os cuidados na companhia do pai.
… você está sempre comigo, e tudo o que tenho é seu.
É assim que o pai em sua sabedoria e maturidade ama seus dois filhos, de formas distintas, mas ama intensamente cada um conforme as suas circunstâncias. Ele é um pai que está afetivamente envolvido e considera cada um, conforme suas necessidades. É um pai coeso, psiquicamente presente.
Na perspectiva da compressão dos três andares da Casa Mental em André Luiz, poderíamos fazer algumas reflexões. Entre elas a ideia de que o primeiro andar, que age impulsivamente em um momento, movido apenas pelos desejos, ascende para um segundo nível onde a razão, a necessidade de viver em sociedade e ter um amparo e trabalho, e percebe que precisa alcançar um outro nível. A humildade é a virtude que dá ingresso ao terceiro andar e ele adquire essa carta ao adentrar nesse nível de possibilidades.
O pai já está, predominantemente, situado no terceiro andar e corre para o filho. É o terceiro andar correndo para socorrer o primeiro, porém existe um ponto de ligação entre eles, é o vetor do amor nutrindo todo esse processo.
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"Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão…
A compaixão é uma virtude de terceiro andar na Casa mental porque envolve razão e coração.
Também para o pai, já velho, poder receber o filho mais novo de volta e se alegrar é preciso que ele esteja confortável com seu envelhecimento. Muitas vezes os pais têm inveja de seus filhos, de sua juventude, vitalidade e condições de sonhar uma vida pela frente. Principalmente, os filhos que não seguem as diretrizes paternas e que resolvem ter experiências muito diversas das que os pais tiveram são sentidos como filhos ingratos e irresponsáveis. Diferentemente do pai da parábola que Jesus nos propõe, outro pai poderia ter recebido o filho pródigo com um olhar de censura e abraçado o filho que permaneceu, utilizando este como exemplo de bom filho, por ter seguido as regras familiares, ter sido obediente e responsável.
Para aceitar o envelhecimento inevitável é necessária uma boa dose de sabedoria, caso contrário esse será um período de grandes conflitos, sobretudo com filhos jovens e cheios de vida pela frente.
Pearl King (1980) nomeia cinco realidades difíceis e novas que podem ser fonte de ansiedade na segunda metade da vida, e até levar a um colapso neurótico. O medo:
1. da perda da potência sexual;
2. da perda de identidade através da perda de papéis profissionais;
3. no casamento, da saída dos filhos de casa;
4. do envelhecimento e das possíveis doenças e dependência de terceiros;
5. da inevitabilidade da própria morte;
G. Junkers. A capacidade de estar só como prova de maturidade para o envelhecer. Revista Brasileira de Psicanálise Vol 58, n,1 .2024 Febrapsi
Para um pai, e isso vale também para as mães em relação às suas filhas, aceitar com alegria que seus filhos possam vivenciar as próprias experiências e aprender com elas, é preciso que esteja medianamente tranquilo com as próprias vivências passadas. Que tenha vivido suas próprias experiências e elaborado o luto de tudo aquilo que não viveu e poderia ter desejado. Ocasionalmente, a vida é palco de permanentes frustrações e muitos sonhos que não se realizam, se desfazem, e tornam-se fonte de amarguras, muitas delas inconscientes, ou seja, não lembradas. O declínio das funções corporais, a perda do vigor físico, decretam a quebra da ilusória plenitude física eterna que é perene, enquanto não se sente nada de limites físicos mais relevantes.
Assunto para desdobrarmos posteriormente, porque relevante em reflexões que pedem aprofundamento, ficamos por aqui enquanto enfocamos a figura de pais que não conseguem lidar com as peripécias dos filhos mais jovens.
Mas, Jesus nos propõe outro tipo de pai na parábola dos dois irmãos.
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"Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão…
O pai estava pronto para receber o filho de volta e festejar o seu reingresso na vida familiar. Está tranquilo com tudo o que conseguiu, pela sua própria vida e talvez possa dar algumas risadas com as traquinagens que o seu garoto viria a contar. Ficaria feliz com o amadurecimento deste, os medos e tristezas que viveu. Sobre a dolorosa travessia da ingenuidade da onipotente vida juvenil, em que ele cogitava que tudo era possível, e a pungente constatação da realidade que o obrigou a “baixar a crista”, e isso não foi tão divertido assim.
Esse pai estava no ponto de acolher o sofrimento do filho que retornava para, silenciosamente, ouvi-lo em seu arrependimento pela arrogância que teve ao afrontar o querido pai e, desaforadamente, ter ido embora da pior maneira, quando pediu em vida o que lhe seria de direito apenas quando o pai já tivesse morrido, ofendeu e o expôs frente aos demais quando lhe constrangeu a se submeter aos seus caprichos irresponsáveis. Ali estava ele de volta, com a cabeça baixa, envergonhado por perceber o seu equívoco.
No entanto, o pai não lhe diz nada quanto a isso. Em contraste, oferece uma festa. O filho estava perdido, mas agora retornava. Isso era o bastante. Não precisou de palavras para dizer o que já estava dito pela linguagem da própria experiência que o garoto havia vivido. A festa não é uma negação de tudo o que aconteceu. O pai não está fazendo de conta que não aconteceu nada. Está propondo que diante de uma grande dor é necessário voltar a brincar para não cristalizar o infortúnio. Ele está ensinando que viver não é sofrer. Que sofrer é uma etapa necessária, mas que não deve passar de uma etapa.
Parece nos ensinar algo valioso. Muitos sofrimentos são prolongados indevidamente, ou seja, mesmo após a cessação dos motivos que os originaram, pois a posição mental estabelece esta permanência, sobretudo quando se verifica uma atitude moralista e super egóica como uma condenação que visa castigar e não educar. Talvez esteja aqui uma lição preciosa, a de que é recomendável não perder a condição de brincar, e nos alegrar constantemente. A festa que o pai oferece ao filho que retorna, após as agruras que viveu, é o símbolo da mudança de postura diante da dor.
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"O filho lhe disse: 'Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho'.
O filho alongaria, pela culpa, o tempo de sofrimento que já tinha sido suficiente. Algo muito comum nos processos humanos é a culpa que permanece e se transforma em remorso e tortura, intermináveis, esmagando a autoestima e decretando a condenação da vida do self.
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"Mas o pai disse aos seus servos: 'Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés.
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Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos.
Depressa!
Interessante a atitude do pai. Parece dizer que já chega de dor e sofrimento. O objetivo do pai não era torturar o filho, mais do que ele mesmo já estava fazendo. Sua função era proporcionar o renascimento da sua autoestima. Estava dizendo que nada é tão grave na vida que não merece o perdão e a chance do recomeço. O pai estava possibilitando outro tipo de experiência, a do retorno à sanidade. Não foi o pai que causou o sofrimento do filho, mas ele próprio, quando fez a sua escolha, mas será o pai que proporcionará a alegria com a festa do seu retorno, porque não é propósito do pai o sofrimento, mas o renascimento.
A metáfora é de grande beleza. O pai dá, no início, a herança e, por fim, a festa. Em nenhum momento ofereceu dor, que é fruto da escolha do filho, que fez a própria trajetória. O pai ficou esperando.
O que estamos aprendendo até aqui? De que pai estamos falando neste momento de nossa reflexão? Talvez um pouco de mistura do que seria o pai humano, mas também do Pai que Jesus nos apresentou. O Pai Dele e de todos nós.
Também nós pedimos antes de nascer a nossa parte na herança. Ele nos deu.
Viemos para lugares desconhecidos e muitas vezes desperdiçamos os recursos emprestados, sofremos. Ficamos pobres, passamos fome. Se tivermos um pouco de juízo, ao invés de nos revoltar e afirmar que a vida não é justa, podemos reconhecer que foi por nossa própria imprevidência e reconhecer que não foi o Pai, mas nós que escolhemos. A humildade é a virtude chave nesse momento. Sem ela, não se consegue dar esse passo. Então, retornamos à casa do pai, um tanto envergonhados, mas ele está feliz e oferece uma festa. A festa do renascimento.
Ninguém pode ver o reino dos céus se não nascer de novo.
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