A Inveja e as Redes Sociais
- fergs
- 12 de mar.
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João Paulo Bittencourt Cardozo
Vice-presidente da UME Carazinho e trabalhador
da CE Joanna de Ângelis, de Sarandi
É na edição de julho de 1858 da Revista Espírita que encontramos uma das mais marcantes conexões com a contemporaneidade, a demonstrar a plena atualidade do periódico que Allan Kardec publicou, mensalmente, por quase doze anos. Trata-se do texto de abertura, que recebeu o título “A Inveja – dissertação moral ditada pelo Espírito de São Luís ao Sr. D...” (1). Retorna o comunicante à reunião mediúnica, dessa vez valendo-se da faculdade de um médium então em aperfeiçoamento, para trazer uma temática que tem impactado profundamente as relações humanas, mais de 160 anos depois, com o advento das redes sociais.
Diz São Luís: “Vede este homem: seu Espírito está inquieto, sua infelicidade terrestre está no auge: inveja o ouro, o luxo e a felicidade, aparente ou fictícia, de seus semelhantes; seu coração está devastado, sua alma secretamente consumida por essa luta incessante do orgulho e da vaidade não satisfeita; carrega consigo, em todos os instantes de sua miserável existência, uma serpente que acalenta no peito e que sem cessar lhe sugere os mais fatais pensamentos: ‘Terei essa volúpia, essa felicidade?’”.
Felicidade, aparente ou fictícia. Este o grande ‘insight’ a ligar os séculos XIX e XXI. Poderia Kardec imaginar que, nas primeiras décadas do século XXI, os seres humanos caminhariam como autômatos, desligados do ambiente à sua volta, com os olhos fixos em pequenas telas que carregariam nas mãos, muitas vezes com a desconexão acentuada por fones nos ouvidos? E que estes pequenos aparelhos viriam a se tornar a passarela da inveja, dando trânsito a imagens clicadas na plenitude dos prazeres sociais, em invejáveis retratos de felicidade – aparente ou fictícia?
Em publicação de 03/06/2009, a Revista Istoé trouxe excelente reportagem intitulada “A inveja desvendada” (2). Esclarecendo que o ciúme é querer manter o que se tem e a cobiça é desejar aquilo que não lhe pertence, destaca que a inveja, por sua vez, é não querer que o outro tenha algo. Mas o aspecto mais interessante que o texto apresenta é o estudo do neurocientista japonês Hidehiko Takahashi, do Instituto Nacional de Ciência Radiológica, em Tóquio, no qual, por meio de ressonância magnética realizada em voluntários, foi possível identificar que, ao sentir inveja, a região do córtex singulado anterior é ativada, tratando-se do mesmo local onde a dor física se processa. "’A inveja é uma emoção dolorosa’, afirma Takahashi”.
A reportagem foi publicada há 15 anos, e por isso não enfocou a inveja como fenômeno de massa provocado pelas redes sociais, que ganhou corpo com o predomínio da rede social Facebook e dimensão avassaladora com o Instagram, baseado, justamente, em imagens. Foi em 2012 que o Facebook alcançou a marca de um bilhão de usuários, abriu o seu capital na bolsa de valores e efetuou a compra bilionária do Instagram. Em 2013, os acessos por telefone celular superaram pela primeira vez os acessos por computador (3). Desde então, estes aplicativos se tornaram a força motriz de um fenômeno que vem sendo chamado de “A Espiral da Inveja”,
Na conclusão do artigo científico intitulado “Sobre a inveja e o narcisismo: uma perspectiva psicanalítica acerca das novas redes sociais virtuais” (4), a Psicóloga Luisa Ruzzarin Pesce registra que “A experiência da confrontação da realidade pessoal, permeada por faltas, com a vida idealizada mostrada pelo outro desperta, conforme a hipótese que procurei levantar ao longo do trabalho, um sentimento de inveja. É nesse momento que a espiral está sendo formada: ao ser tomado de sentimentos agressivos inerentes à inveja, a partir das publicações expostas na rede, o sujeito defende-se procurando despertar o mesmo sentimento nos demais usuários. Também ele quer provocar inveja: quer infringir o mesmo sentimento no outro”.
Por isso a atualidade do texto da Revista Espírita que, a um só tempo, destaca o quão negativa é a inveja e o quanto ela é provocada, muitas vezes, por uma felicidade fictícia, ou seja, simulada, falseada em imagens perfeitas encenadas para serem postadas em redes como o Instagram, sorrisos brilhantes em cenários encantadores que muitas vezes disfarçam uma infelicidade atroz ou um vazio na alma.
Não é preciso pensar muito para se reconhecer a urgência de trabalharmos o sentimento de inveja, típico de seres humanos em nosso grau evolutivo.
Do ponto de vista técnico, a reportagem da Revista Istoé (‘op. cit.’) apresenta opiniões bem lúcidas quanto a isso: “A psicóloga Sueli Damergian, professora da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o segredo está em não ultrapassar a linha da afeição. ‘A inveja é sempre fruto da admiração’, diz. ‘Se ela ficar restrita a isso, pode funcionar como impulso para o desenvolvimento." O problema é quando essa barreira é rompida”. Já o psiquiatra José Thomé, da Associação Brasileira de Psiquiatria, além de destacar que “pessoas bem resolvidas e esclarecidas tendem a ter menos inveja”, aponta que as pessoas têm livre-arbítrio para viver ou eliminar a inveja, acrescentando que “é um sentimento muito primitivo, que deve ser trabalhado”.
E o conhecimento espírita inquestionavelmente pode contribuir para que a inveja seja controlada, e para que as pessoas se mantenham na salutar linha da admiração ao próximo, empregando o livre-arbítrio para progressivamente eliminar esse sentimento nocivo.
São Luís, de seu lugar de fala, enfoca o aspecto religioso da questão: “(...) a inveja é uma das mais feias e mais tristes misérias de vosso globo; a caridade e a constante ‘emissão’ de fé farão desaparecer todos os males, que se irão um a um, à medida que se multiplicarem os homens de boa vontade que a vós se seguirão” (‘op. cit.’).
Mas o Espiritismo pode levar a questão para bem além do aspecto religioso. O pensador espírita Ney Lobo, citando o filósofo Aristóteles em "Ética a Nicômaco” (5), destaca que “(...) a virtude (perfeições) só pode ser adquirida pelo hábito dela, do bem. E isso, pela repetição exaustiva dos atos da mesma natureza. Por exemplo, para formar o hábito do perdão, teremos de praticar muitos e muitos atos de perdão”.
E nada melhor do que, mais uma vez, retornarmos aos fundamentos trazidos em “O Livro dos Espíritos” (6). Se a caridade, evocada por São Luís como o remédio à inveja, é benevolência, indulgência e perdão (Questão n. 886); se a educação é o conjunto dos hábitos adquiridos (Questão nº 685-A) e se a repetição dos mesmos atos exerce influência sobre o espírito (Questão nº 375-A), temos aí a expansão da reflexão ao nível filosófico, sob a ótica aristotélica. Que nos convida à auto-observação em situações que nos desencadeiam sentimentos de inveja e ao esforço de repetição da resposta mais adequada quando ela surge, racionalizando as ocorrências e, dessa forma, promovendo a nossa autoeducação enquanto Espíritos.
Sabe-se que não é simples, mas é o convite, que talvez pareça utópico agora, porém é necessário e urgente. Se inveja é dor, e pode ser uma espiral de dor o que o uso descontrolado das redes sociais provoca, incumbe a cada um abreviar o próprio sofrimento e o do próximo. Antes de tudo, conscientizar-se da própria dor. Logo a seguir, mudar os hábitos, persistir na mudança e, assim, realizar a sua autoeducação, que é investimento em saúde e em uma vida mais equilibrada e feliz.
O caminho não é outro. Avante!
Referências:
(1) Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano primeiro – 1858/publicada sob a direção de Allan Kardec; [tradução de Evandro Noleto Bezerra; (poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima)]. – 4. Ed. – Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 275-277.
(2) https://istoe.com.br/19773_A+INVEJA+DESVENDADA/, acesso em 25/06/2024.
(3) Dados extraídos da reportagem “Facebook completa 10 anos; veja a evolução da rede social”, publicada no site G1 em 04/02/2014, em https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/02/facebook-completa-10-anos-veja-evolucao-da-rede-social.html#:~:text=O%20Brasil%20foi%20alvo%20da,alcan%C3%A7ou%20845%20milh%C3%B5es%20de%20usu%C3%A1rios.&text=A%20compra%20bilion%C3%A1ria%20do%20aplicativo,destaques%20do%20Facebook%20em%202012, acesso em 25/06/2024.
(4) https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/95469/000915194.pdf, acesso em 25/06/2024.
(5) LOBO, Ney. Projeto para o desenvolvimento da espiritualidade e sua técnica. Em “A Reencarnação”, órgão de divulgação da FERGS – Federação Espírita do Rio Grande do Sul, nº 413, Ano LXII, 2º Semestre/96, p. 23.
(6) O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados por Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013, p. 203, 319-320 e 393.
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