A Literatura do Além
Vinícius Lima Lousada[1]
E a respeito da ressurreição dos mortos, não lestes o que vos foi dito por Deus, quando diz: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ele não é Deus de mortos, mas de vivos. (Mateus 22:31-32)[2]
A literatura propriamente dita, advinda da vida espiritual, foi objeto de anotação na Revista Espírita, órgão de difusão do Espiritismo fundado por Allan Kardec, já em seu primeiro número. Neste, o mestre registrou a publicação da obra História de Joana D’Arc, ditada por ela mesma à jovem médium Ermance Dufaux e ressaltou a especialidade mediúnica daquela moça para a narrativa histórica. Aos poucos, seções sobre bibliografia se tornaram comuns ao longo dos volumes da Revue, o que denota ter sido Kardec um leitor voraz e um pesquisador sempre atento ao que aparecia em torno da temática do Espiritismo, obra de sua vida.
Mais tarde, Kardec publicou a sua derradeira obra, o Catálogo Racional: obras para se fundar uma biblioteca espírita (1869), onde listara em três seções as obras publicadas, até então, que tematizavam a Filosofia Espírita: obras fundamentais do Espiritismo, em que figuravam seus livros construídos com a metodologia que desenvolveu para a Ciência Espírita; obras diversas sobre o Espiritismo, constando ali referenciadas também músicas, poesias e desenhos; obras realizadas fora do Espiritismo, ou seja, para além do âmbito do movimento espírita nascente, oriundas do campo da Filosofia, da História, das Artes, das Ciências, do Magnetismo e, por fim, até mesmo contra a Doutrina.
Destaco aqui, portanto, que a atenção de Kardec não se voltou somente às obras cujo conteúdo tivesse sido produzido neste plano material, mas, também, àquelas cujas ideias vertiam do plano espiritual pela mediunidade, analisando todas, evidentemente, pelo crivo da razão, ensinando-nos a distinguir a boa da má, conforme o conteúdo.
O pesquisador italiano Ernesto Bozzano (02/01/1862 - 24/06/1943) dedicou-se, também, à investigação da literatura produzida com o concurso dos Espíritos e a enfeixou em um livro chamado Literatura de Além-túmulo, sustentando, como resultado de seus estudos, a tese espírita da comunicabilidade com os habitantes do mundo invisível embasada em fatos diversos.
Afirma Bozano em suas conclusões:
“Queria, em suma, que se compreendesse que, quando se discutir sobre a validade da hipótese espírita, não se deverá nunca esquecer que esta validade não repousa unicamente sobre casos de informações pessoais fornecidas pelos mortos que se comunicam. Ela está, inabalavelmente, fundada num feixe de provas extraídas de um conjunto inteiro de manifestações supranormais: anímicas e espíritas.”[3]
Conforme Bozzano, não faltavam evidências da natureza espiritual da criatura humana, no corpo ou fora dela, onde se inscrevesse de forma patente a colaboração da produção literária do Mais-além.
No ambiente acadêmico contemporâneo vamos encontrar, entre diversos estudos, aquele produzido por Alexandre Caroli, do campo dos Estudos da Linguagem, em que foi objeto de sua investigação a produção literária de Humberto de Campos através da mediunidade de Francisco Cândido Xavier. A tese de Doutorado de Caroli se voltou a cinco textos dos 12 livros ditados por Irmão X, entre os anos 1937 a 1969.
Com notório zelo pela imparcialidade científica, o pesquisador destacou que não é possível no estudo da literatura mediúnica a identificação do autor sem se assumir a teoria da vida após a morte ou do fenômeno mediúnico e, assim, o pesquisador conclui a sua tese:
No cômputo geral, acredito que o trabalho tenha levantado muitas questões, multidisciplinares, que continuam em aberto, à espera de novas pesquisas. Por fim, parafraseio um trecho da crônica “Como cantam os mortos”, de Humberto de Campos: a obra de Chico Xavier, assim como a de outros médiuns, merece, como se vê, a atenção dos estudiosos.[4]
Aliás, Chico Xavier, notável médium brasileiro e reconhecido homem de bem, consoante a definição do termo dada por Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo, psicografou, por sua vez, cerca de 400 obras de caráter literário tão polimorfo quanto à sua mediunidade. Recebeu contos, romances, obras poéticas, textos sobre temas científicos, filosóficos e religiosos, relatos da vida espiritual e etc. E, vale lembrar sempre: todos os direitos autorais foram cedidos por Chico Xavier integralmente à sustentabilidade do movimento espírita, no espírito da caridade desinteressada e da mediunidade religiosamente praticada. Dessa forma, podemos nos perguntar: quanto esclarecimento espiritual chegou até nós outros através desta abençoada produção literária do Além, não é mesmo?
Diante da literatura advinda do mundo dos Espíritos, ao lado do rigor metodológico de análise recomendado por Allan Kardec, a fim de separarmos “o joio do trigo”, pois que o mundo invisível comprometido com a espiritualização dos indivíduos não abre mão do concurso da responsabilidade humana, cabe-nos, também, aproveitar as contribuições dos textos ditados pelos Espíritos para o nosso próprio desenvolvimento intelectual e moral.
Para tanto, parece oportuno nos questionar: o que temos feito diante de tantas luzes trazidas pela literatura espírita e mediúnica? Ante o trabalho hercúleo de Allan Kardec, dos Benfeitores Espirituais e de devotados pesquisadores e médiuns ao longo da História do Espiritismo, qual tem sido o nosso aproveitamento em termos de autoiluminação? Naturalmente, cada consciência é que pode responder por si mesma.
Tenhamos clareza, entretanto, que cada livro espírita coerente com a obra de Kardec constitui uma “boia salva-vidas”, lançada aos náufragos que foram jogados, sem rumo, ao mar do ceticismo e da desilusão pelas inclementes ondas do materialismo ou da fé cega. Enfim, constitui-se a literatura espírita em uma diversidade de recados da Providência Divina sobre a nossa natureza espiritual e imortalidade, conclamando-nos a compromissos salutares para com a vida da alma e a sua progressão.
Referências: [1] Vice-presidente de Unificação da Fergs. [2] O Novo Testamento. trad. Haroldo Dutra Dias. FEB. Edição do Kindle. [3] BOZZANO, Ernesto. Literatura de além-túmulo. trad. Francisco Klörs Werneck. 3. ed. Bragança Paulista/SP: Instituto Lachâtre, 2013, p. 110. [4] ROCHA, Alexandre Caroli. O caso Humberto de Campos: autoria literária e mediunidade. Alexandre Caroli Rocha. Campinas, SP: 2008. Orientador: Haquira Osakabe. Co-orientadora: Maria Betânia Amoroso. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária, p. 249-250.
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