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A preguiça




João Paulo Cardoso

 

A edição de junho de 1858 da Revista Espírita traz, por entre diversos temas selecionados por Allan Kardec, um texto intitulado “A Preguiça – dissertação moral ditada por São Luís à Senhorita Hermance Dufaux” na data de 05 de maio daquele ano (1). O comunicante, enquanto encarnado, reinou na França como Luís IX, viveu entre 1214 e 1270 e, considerado o modelo do monarca cristão ideal, foi canonizado pela Igreja Católica em 1297. Valendo-se da mediunidade precisa da jovem, São Luís desenvolve espécie de parábola, que ecoa os trabalhadores da última hora (Mateus 20: 1-16), contando a história de dois homens, um dedicado e outro preguiçoso, e as consequências das escolhas de cada um deles.

A preguiça, sob um primeiro ponto de vista, pode indicar uma condição de saúde mental. Mesmo que não exista uma doença denominada preguiça, ela "(...) é sintoma de algumas patologias como a Narcolepsia, que é o excesso de sonolência, a Depressão, cujos sintomas incluem passividade e falta de motivação, ou, ainda, síndromes ligadas ao cansaço, como a Síndrome da Fadiga Crônica" (2). O mesmo texto também aponta a preguiça como causa de outras doenças, uma vez que o sedentarismo, por exemplo, pode estar relacionado a quadros como obesidade, problemas cardíacos e diabete.

Mas não é a preguiça como questão de saúde o objeto da dissertação de São Luís: “Eu vos digo que a força não foi dada ao homem, nem a inteligência ao seu espírito, para consumir os dias na ociosidade, mas para ser útil aos semelhantes. Ora, aquele cujas mãos estiverem desocupadas e o espírito ocioso será punido e deverá recomeçar sua tarefa” (‘op. cit.’).  

O texto fala, portanto, da preguiça como questão moral, ou seja, da indolência, associada no dicionário a ideias como falta de sensibilidade, torpor, falta de ânimo, morosidade, impassibilidade, indiferença... (3). São Luís se refere àqueles que, perfeitamente saudáveis e podendo ser úteis, intencionalmente optam por imobilizar as próprias forças, insensíveis às necessidades alheias à sua volta.

É certo que a palavra punição, empregada por São Luís, não deve jamais ser lida como uma pena advinda de um juiz externo; a Doutrina Espírita nos ensina que o único tribunal a que estamos submetidos é o da nossa própria consciência, onde está escrita a Lei de Deus (Questão n. 621 de ‘O Livro dos Espíritos’) (4).

Da mesma forma, não se pode enxergar na mensagem qualquer espécie de condenação absoluta do ócio, que é, ele mesmo, uma condição da saúde mental. Nos ensina a Psicologia que, “Na busca do bem-estar mental, não só o ócio tem um papel importante. Programar a rotina com horários definidos para comer, dormir, trabalhar, estudar, praticar um esporte ou atividade física, incluindo momentos de pausa, também ajuda na prevenção e no tratamento de transtornos mentais” (5).

Portanto, diante da preguiça como fragilidade moral de seres saudáveis, a grande contribuição do Espiritismo é oferecer subsídios à compreensão do equilíbrio que todos devemos buscar no cumprimento de uma importante lei moral: a lei do trabalho.

Terceira das leis morais contidas na Parte Terceira de ‘O Livro dos Espíritos’ (6), ensina-nos que o trabalho é uma necessidade (Questão n. 674), que toda ocupação útil é trabalho (Questão n. 675), que trabalho é um meio de aperfeiçoamento da inteligência (Questão n. 676), que tudo na Natureza trabalha (Questão n. 677), dentre diversos outros apontamentos. Mas também ressalta que o repouso é igualmente uma Lei da Natureza, que serve para a reparação das forças do corpo e para que a inteligência, livre, se eleve acima da matéria (Questão n. 682), sendo o limite do trabalho o das forças, quanto a que “(...) Deus deixa inteiramente livre o homem” (Questão n. 683).

Com isso se pode até esboçar uma definição de preguiça como um descumprimento da lei do trabalho mediante o abuso do direito ao repouso. Um vacilo da vontade que conduz, segundo São Luís, ao desperdício da força e da inteligência no ócio, quando se poderia ser útil a quem está necessitando. Da Questão n. 683, a conclusão de que incumbe a cada um descobrir em si o limite entre o trabalho e o repouso, tanto quanto compete a cada qual saber o ponto onde termina o necessário e começa o supérfluo.

As leis morais de ‘O Livro dos Espíritos” constituem, como o próprio nome diz, normas de conduta. Entretanto, é preciso reconhecer que a preguiça é reprovável mesmo que se ignorasse a existência dessas leis, que, do ponto de vista espírita, têm cunho filosófico e como fonte a Espiritualidade Superior. “Pelo contrário, o traço distintivo e o fundamento da ética laica residem na escolha e, portanto, na autodeterminação da pessoa: em não fazer o mal e em fazer o bem não porque Deus quer ou alguma regra ou valor objetivo heterônomo, mas porque se quer autonomamente”, porque “(...) a moral laica é fundada de fato, sobre a autonomia da consciência (...)“ (7).

Desse modo, quer porque, enquanto espíritas, reconheçamos não só a fonte superior mas, principalmente, a lógica irreparável das leis morais contidas em ‘O Livro dos Espíritos’, e simplesmente decidamos cumpri-las; quer porque, em nossa condição humana, nos baseemos somente nela e, dispensando qualquer regra de origem externa (heterônoma), decidamos fazer o bem e agir com humanidade, o certo é que vencer a preguiça é a decisão obrigatória, e para isso é preciso fortalecer a vontade vacilante.

E ninguém traz subsídios mais adequados a isso do que Léon Denis em seu clássico ‘O Problema do Ser, do Destino e da Dor’ (8), cujo capítulo XX tem como título, justamente, “A vontade”: “Querer é poder! O poder da vontade é ilimitado. O homem, consciente de si mesmo, de seus recursos latentes, sente crescerem suas forças na razão dos esforços. Sabe que tudo o que de bem e bom desejar há de, mais cedo ou mais tarde, realizar-se inevitavelmente, ou na atualidade ou na série de suas existências, quando seu pensamento se puser de acordo com a Lei Divina. E é nisso que se verifica a palavra celeste: ‘A fé transporta montanhas’”.

Este texto está sendo escrito em maio de 2024, quando o Rio Grande do Sul, estado natal de quem escreve, sofre a maior catástrofe natural de sua história, decorrente de inundações em dimensão nunca dantes presenciada. As pessoas, a sociedade civil e o Poder Público mobilizam-se como jamais visto. Por isso a atualidade do tema e das palavras de São Luís: nunca foi tão necessário ser útil aos semelhantes, jamais foi tão inadmissível consumir o tempo no ócio. 

Que assim consigamos, nesse esforço de redescoberta e revalorização da Revista Espírita e do pensamento do Codificador Allan Kardec, reencontrar seus temas e trazê-los à atualidade, retomando os seus exemplos e fazendo deles paradigmas ao nosso proceder nesses dias de nossa existência em que tanto está sendo pedido de cada um de nós.  

 

Referências:

(1)Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano primeiro – 1858/publicada sob a direção de Allan Kardec; [tradução de Evandro Noleto Bezerra; (poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima)]. – 4. Ed. – Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 254-255.

(2)"Preguiça: doença ou condição?" em:

(4)O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados por Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013, p. 297.

(5)Puertas, Camila (Psicóloga), “A importância dos momentos de ócio para a saúde mental”, em: https://saude.abril.com.br/coluna/com-a-palavra/a-importancia-dos-momentos-de-ocio-para-a-saude-mental, acesso em 09/05/2024.

(6)‘Op. Cit.’, p. 317-320.

(7)FERRAJOLI, Luigi, 1940. Manifesto pela igualdade e por uma constituição da Terra [recurso eletrônico]/ Luigi Ferrajoli; Sérgio Cademartori. – Dados eletrônicos. – Canoas, RS: Ed. Unilasalle, 2021, p. 36.

(8)DENIS, Léon, 1846-1927. O problema do ser, do destino e da dor [...] – 32. ed. – 8. imp. – Brasília: FEB, 2017, p. 295.

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