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Capítulo Final




A vingança é uma inspiração tanto mais funesta, quanto tem por companheiras assíduas a falsidade e a baixeza. Com efeito, aquele que se entrega a essa fatal e cega paixão quase nunca se vinga a céu aberto.[1]

 

O prédio situava-se na periferia da capital, era amplo, simples, pintado em cores vivas e bem harmonizadas, cercado por um muro alto circundando o pequeno parque de onde vinham as vozes das crianças alvoroçadas, imersas nas brincadeiras promovidas pelos educadores atentas.

O casal parado diante do portão olhou-se traduzindo um misto de sentimentos se entrechocando na alma, enquanto adentravam a instituição e eram recebidos pela Diretora Anabela, que logo foi identificando-os – é o casal que o Dr. Lazarus falou que nos visitaria?

Constrangidos, Fernanda e Nivaldo balançaram a cabeça, pois não estavam à vontade diante da situação, e foi Fernanda que se adiantou dizendo:

– Professora, nós apenas viemos visitar e conhecer a instituição e saber se podemos auxiliar em algo.

Com grande alegria a diretora convidou-os a conhecer as dependências da escola infantil e foi narrando o histórico daquele projeto, criado pela comunidade do entorno há quase cinco anos, em uma velha casa, cedida pelos proprietários e reformada precariamente para acolher as crianças que não tinham onde ficar, considerando o alto número de mortes provocadas pelo tráfico naquela região, deixando muitas delas órfãs ou abandonadas pelas mães que não tinham como prover-lhes o sustento.

– Foi há uns três anos, mais ou menos, que o destino dessa escola começou a mudar, quando uma mulher muito digna, discreta passou a nos auxiliar. Primeiramente ela enviava os valores através do Dr. Lazarus, seu procurador e no último ano ela passou a vir aqui também, fazia isso sempre à noite. Depois que as crianças dormiam, ela chegava, silenciosamente, sentava-se na porta de um dos quartos e ficava longos instantes observando os pequenos durante o sono. Muitas vezes a vi enxugar as lágrimas e ousei perguntar-lhe o que lhe causava tanta dor. Ela me confessou ter um único filho e ele morrera no dia mesmo do nascimento. Fiquei com muita pena daquela mulher e a convidei a vir mais vezes, durante o dia, brincar com as crianças, mas ela nunca veio, continuou as suas visitas solitárias, silenciosas, à noite. Fui surpreendida com a notícia da sua morte trazida pelo advogado. Não sei nem mesmo o seu nome, ela nunca se identificou, nem permitia o doutor fazê-lo, pois os recibos eram todos colocados no seu nome. Queríamos mandar rezar uma missa e o doutor disse que apenas mencionássemos o nome de “Nice”. Oro por dona Nice, sempre. Creio que teremos dias difíceis novamente nessa instituição, pois com a sua perda voltamos às velhas e boas lutas – sorriu, com o olhar meditativo.

Anabela ia mostrando as salas bem equipadas, iluminadas, limpas, agradáveis e complementava – esse prédio foi construído por ela, com o seu dinheiro. Recebemos a doação há dois anos, quando mudamos para cá.

Fernanda estava com o coração dilacerado pelas emoções. Que teste difícil! Nunca concordaria que os fins justificam os meios e depois de tudo o que o Dr. Lazarus dissera sabia de onde proviam os recursos que a filha entregava ali naquela instituição. Mesmo diante do benefício distribuído a tantas crianças, ele advinha do dinheiro obtido à custa da vida de muitos, até mesmo dos próprios familiares dos órfãos ali atendidos. Buscava no fundo do seu coração compreender o ensinamento da Doutrina que era o mais firme pilar da sua caminhada existencial: “Deus é justo e julga mais a intenção do que o fato.”[2]

Ouvir alguém dizer que sua filha era digna soava como uma chicotada na sua consciência, quem sabe não investira todo o potencial de amor necessário para regar esses sentimentos bons que se deixaram sobrepujar pelo mal. Por que a mulher capaz de proteger, ajudar os órfãos do próprio crime que patrocinava abandonara o filho e não fora capaz de abandonar o crime por ele?

Nivaldo respirava com dificuldade e teve que sentar e ser atendido pelas professoras perplexas sem entender o estado de ânimo do casal. Fernanda preocupada com o marido pediu para chamarem a ambulância e os socorristas acharam melhor levá-lo para o Hospital.

Quando voltaram para casa ficaram longo tempo em silêncio, escolhendo palavras para definir as emoções vividas. Como a vida tinha lhes apresentado quadros difíceis de compreender e de assimilar. Aos poucos foram rememorando, ora um, ora outro, todos os fatos experimentados ao longo da existência. Repassaram as decisões tomadas, os valores integrantes da pauta de esforços mantida diuturnamente, em família, na profissão, nas comunidades, no voluntariado espírita e concluíram haver trilhado o caminho que a sua evolução dizia estar correto. Por que tantas dores? Ao mesmo tempo das indagações afloradas brotavam as lições aprendidas e gravadas na consciência. Era necessário continuar na senda do bem-sofrer para merecer a bem-aventurança prometida por Jesus.

– Lembras, Valdo, das muitas vezes que o nosso querido mentor Carlos referiu a tua reencarnação em regime provacional e as lutas a serem enfrentadas para o credenciamento a novas e graves tarefas? Nunca devemos esquecer essa meta, por mais difícil pareça cumprir o propósito da encarnação se mantivermos a proximidade com o Mestre das nossas vidas teremos êxito.

– Sim, Nanda, somente nessas horas de dor extrema conseguimos aferir o significado de uma existência dedicada a afirmar o bem em meio ao mal, manter a candeia da lucidez e da dignidade nas trevas da perversidade e da ignorância, renovar o óleo do bom ânimo no seio de tamanhas vacilações. Vejo que somos desafiados no reduto mais próximo e mais regido pelo interesse pessoal – a nossa família – e vamos compreendendo o custo do cumprimento do dever ante os interesses do coração.

A medida que iam relembrando o conhecimento Espírita que lhes felicitava a alma há tantas décadas, aplicando-os no entendimento das aparentes tragédias familiares enfrentadas, as lágrimas também cumpriam o seu papel consolador, aliviando a avalanche de sentimentos e aos poucos foram buscando forças para abrir a carta que Lazarus lhes entregara, ao noticiar a morte de Nice.

Nela, a filha lhes relatava mais aspectos da sua vida dentro e fora da prisão. Não havia detalhes, mas os fatos até então ignorados pelos pais, estavam todos descritos dolorosamente.

“Sua Excelência, mesmo preso, impôs seu domínio sobre os comparsas também reclusos, dentre eles Nice, embora resistisse aos assédios por um tempo, foi submetida a maus tratos pelas demais presas e agentes pagos pelo “chefe” e mesmo transferida de prisões era perseguida e alcançada pela mão asquerosa da organização a que pertencera. Por fim cedeu às pressões com o coração cheio de ódio e estabeleceu compromissos para quando saísse da prisão, mas arquitetou seus planos de forma sub-reptícia e cruel para se vingar dos que a torturaram e perseguiram. Vendo-se livre trocou de identidade, modificou a face através de cirurgia plástica e por meios que não revelava ali, apenas mencionava ter acessado senhas e identificado esconderijos de pedras preciosas e dólares, guardados pelo ex-Prefeito para quando fosse posto em liberdade. Transferiu para suas muitas contas com identidades forjadas uma grande fortuna e assim criou um novo braço do crime que comandava com mão de ferro. Na sequência dos relatos vinha a parte mais triste e dura das confissões trazidas na carta: a eliminação dos desafetos.

Há algum tempo a imprensa noticiou, primeiramente, a morte de Antonio Carlos dada como suicídio por enforcamento na cela – estranha morte – as vésperas do livramento condicional – e foi transmitida por Acádio, em razão da amizade que estreitara com Nivaldo e sendo sabedor da paternidade do filho de Nice, fez o comunicado à família. Depois disso, “Sua Excelência” foi resgatado de dentro de uma viatura, ao ser transferido para outra prisão e encontrado morto em um terreno baldio. Alguns outros membros da facção foram sendo também trucidados dentro da prisão. Interromperam a leitura muitas vezes, horrorizados, em dados momentos tiveram ímpeto de queimar aquele papel maldito, mas depois entenderam a necessidade de saber tudo, pois essa era também uma sofrida prova a ser superada. Já há alguns anos a imprensa noticiava o surgimento de uma facção comandada por uma mulher misteriosa e que agia com requintes de crueldade contra inimigos e traidores, o que eles nunca poderiam imaginar é que tais fatos eram planejados e ordenados por sua filha.

O último parágrafo daquela infeliz missiva era uma autossentença lavrada com sangue, lagrimas e dor.

“Minha mãe, meu pai, nada do que está a acontecer comigo é culpa de vocês. Não sofram, não se supliciem, somente eu sou a responsável pelo desperdício da encarnação recebida com tantos fatores para o êxito. Somente a família que tenho seria o suficiente para o triunfo sobre as paixões inferiores que me dominam. Se vocês estão lendo isso é porque eu já estarei morta. Sei que a minha hora chegará em breve e por isso escrevi, guardei e deixei a chave do cofre, onde a guardei, com Lazarus. Nesse lodaçal do crime não há vida longa, nem fidelidade, nem qualquer sentimento nobre. Por isso, a qualquer momento, assim como dei fim aos meus inimigos, outros farão o mesmo comigo. Tentei ainda fazer algo de bom e quando eu não estiver mais viva vocês saberão.

Penso na vida futura e creio que ela será apenas a continuidade do inferno que eu vivo aqui. Lá devo reencontrar os monstros todos que despachei antes de mim. Fico tranquila em saber que eles não os prejudicarão mais, nem ao Fernando – especialmente o pai dele.

Espero em outra vida saber merecer o que me for dado por Deus, se ele existe mesmo – e sei que será uma vida difícil, portanto nem ouso pedir que me recebam de novo. Vocês merecem ser felizes e fizeram tudo por nós, por mim, pelo Valdinho, pelo Rodrigo. Perdoem-me.”

Dinah e sua equipe amparavam Fernanda, enquanto Carlos, Honório e Siá Tonha[3] projetavam energias saturadas de essências de passiflora, melissa e componentes extraídos das paragens espirituais superiores, para atuarem sobre o sistema nervoso a fim de produzir um relaxamento das tensões experimentadas ante as notícias tão trágicas colhidas. Embora a crueza das revelações, a ambiência espiritual mantida pelo casal, no supremo esforço de agir bem e praticar o bem os manteve ao abrigo de impactos mais danosos a sua economia fisiopsíquica.

Lazarus talvez soubesse onde estavam os restos mortais de Nice, mas silenciou. Também não forneceu à família maiores informações sobre o nome usado por ela, e foram muitos para ludibriar polícia e inimigos. Comprometido com a trajetória criminosa e com o desenlace dela, por algum tempo ele seguiu de perto a família até perceber que não representavam qualquer risco para ele, o novo “chefe”.

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O tempo passou trazendo novas dores e alegrias também. Fernando crescia sendo um neto amoroso para com os avós. Quando eles lhe revelaram sobre a morte da mãe, algum tempo depois dos fatos ocorridos, Fernanda preparou-se para dar-lhe alguns detalhes, mas ele olhando-a com muita serenidade, apenas disse:

- Mãe, eu nem sei quem é essa mulher que você diz ser a minha mãe verdadeira. Embora você tenha me falado sempre sobre ela, mostrado fotos, nunca a vi, portanto minha mãe é você – e nunca mais indagou qualquer coisa sobre o fato, como se nas profundezas do Espírito imortal, compreendesse perfeitamente que o reencontro com Açucena/Nice deveria aguardar um pouco mais de trânsito na inevitável senda da evolução.

Agora, cursando Agroecologia, demonstrava uma sensibilidade extrema em relação à preservação da natureza, da vida, enfim.

Detinha-se, horas a fio, a conversar com Nivaldo sobre o manejo do solo e o aproveitamento de recursos, fazendo com que o avô revivesse os dias passados, no trabalho na terra.

A escola ajudada por Nice foi adotada por Nivaldo e Fernanda para drenarem, pouco a pouco, a nuvem densa que os recursos ali empregados traziam para o trajeto de tão belo trabalho e assim aquietavam o coração.

Toda a vez que lembravam da filha e do escabroso caminho por ela escolhido redobravam as orações, confiando na Incomparável Misericórdia Divina, no Seu Amor Incondicional e trabalhavam no bem, mais e mais, entregando os seus escassos méritos para abrandar os sofrimentos dos filhos queridos nas suas lutas redentoras.

 


Final da 1ª temporada.


Referências:


[1] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo (p. 198). FEB Publisher. Edição do Kindle.

[2] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos (p. 394). FEB Publisher. Edição do Kindle. Q. 747.

[3] Espíritos benfeitores que integram a falange de Sepé Tiaraju

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