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Siá Tonha cap. XXIII - Culpa e Libertação



O remorso é um lampejo de Deus sobre o complexo de culpa que se expressa por enfermidade de consciência. O sofrimento é a terapia de Deus destinada a erradicá-la. [1]


A misericórdia infinita de Deus para com as suas criaturas traz sempre os estímulos abençoados para a retificação das almas trânsfugas do dever.

Anacleto poderia ter continuado a luta para assumir seus bens e a governança do lar, mas as matrizes da culpa decalcadas no Espírito calceta não lhe conferiam a energia suficiente, para refazer o caminho no rumo dos corações que dilacerara com sua indiferença. Expoliara tesouros sublimes da paternidade e da conjugalidade que ora expiava na solidão e mendicância.

Quantas vezes batido pela fome, pelo frio, pelas enfermidades que lhe fustigavam a mente e o corpo não verteu lágrimas escaldantes de saudades do lar desprezado, da família esquecida.

Abençoada dor que somente a certeza da imortalidade da alma pode trazer.

Quando reencontrou Lucélia, semimorta, mendigando na rua, a repulsa, o ímpeto de fugir nada mais foram do que o remorso travestido que chegava para produzir, quiçá a cura.

Antonia, diligente e amorosa, tomou a seu cargo, por orientação de Sepé, a tutela daquele ser que construíra para si, nas vidas transatas, o impulso homicida. A violência interior de Vitorino, o filho adotivo de Eugênia,[2] que renasceu e tornou-se um matador a serviço de latifundiários de terra, agora retorna no lar de uma de suas vítimas, que se decidiu a recebê-lo e encaminhá-lo nas veredas do bem. Pouco progresso fizera sem a educação rígida que devia ter sido proporcionada pelos pais, a agressividade latente brotara na forma de sensualidade, fazendo com que o desejo de destruir a si e aos que com ele compartilharam a vida se revelasse nas suas atitudes desastrosas. Anacleto matou sonhos, ideais, matou os pais e o filho, pois o acidente tivera a sua deliberação criminosa, ao ingerir o álcool que lhe diminuiu os reflexos na direção do carro.

Assim, o anjo benfeitor, reconhecendo aquele Espírito que tivera com ela a parceria infeliz nos tempos do garimpo, dedicou-se a inspirar-lhe a busca pela libertação.

Certa noite em que as forças lhe faltavam, pois desde que encontrara Lucélia, perambulava sem descanso, como se mil vozes ululantes o perseguissem, sentia-se como se alguém lhe tomasse pelo braço com uma força da qual não podia se subtrair. A última visão que teve foi de um portão de ferro e um homem alto e magro que vinha na sua direção.

Quando despertou estava deitado em uma cama limpa e macia. Um raio de luz caía-lhe sobre a face. Um vulto foi se delineando aos seus olhos doridos.

- Meu irmão, está me ouvindo?

A voz forte, sonora, parecia vir de muito longe.

- Onde estou?

- Em uma casa em que vamos cuidar de ti. Estás muito fraco.

- Já mandamos chamar um médico, talvez tenhas que ir ao hospital.

Anacleto fez um movimento brusco para se levantar, mas não conseguiu.

- Hospital? Não, não, não quero vê-la.

O interlocutor conteve o enfermo, acalmando-o com paciência.

O médico estava chegando. O exame revelou que o mendigo tinha um esgotamento nervoso. Ministraram-lhe um calmante que o fez dormir profundamente.

Quando acordou estava tranquilo. Foi para o banho e alimentou-se. Estava concluindo a refeição quando viu que o homem que o recolhera e tomara conta dele até o médico chegar se aproximava.

Era um jovem alto, com um olhar firme, que transmitia confiança e bondade ao mesmo tempo.

Como você se chama amigo?

- Anacleto

- Anacleto! Seu nome não é muito comum. Tive um colega nos primeiros anos do primário com o seu nome.

Anacleto sentiu-se desconfortável com aquela fala. Não queria ser descoberto por alguém que o conhecera antes. Não lembrava daquele moço, mas...

O constrangimento do mendigo não passou despercebido àquele homem afeito a lidar com as mazelas humanas e trocou de assunto.

- Como estás te sentindo?

- Bem. Já posso ir?

- Sim, mas podes voltar sempre. Aqui temos sempre a cama, o banho, o jantar e o café.

- O senhor pode me dizer onde estou?

- Claro. Aqui é o Albergue Noturno Dias da Cruz. Não fique ao relento. Venha se abrigar aqui.

- Eu agradeço, mas eu tenho onde ficar. Muito obrigada, senhor ...?

- Roberto, meu nome é Roberto. Posso lhe dar um presente?

- Presente? Por que?

- Porque sinto que isso vai mudar a sua vida Anacleto. Mudou a minha.

- Roberto estava sob a inspiração de Antonia, que derramava energias no seu centro de forças coronário e sugeria-lhe a ideia de entregar ao seu pupilo um exemplar de O Evangelho Segundo o Espiritismo.

Anacleto segurou nas mãos o pequeno volume e saiu rápido, sem olhar para trás. Roberto Michelena acompanhava-o com o olhar, rogando a Deus que aquele filho pródigo reencontrasse o caminho da Casa do Pai.

Naquele dia Anacleto sentara debaixo da guajuvira frondosa do parque. Gostava dali, lembrava das árvores que ficavam na frente da fazenda onde crescera e vivera com seus pais. O sofrimento fizera-o pouco a pouco avaliar o quanto tivera na vida e desperdiçara. Podia dizer que sentia saudade, sentimento que custou a definir e entender. Era saudade. A sombra da grande guajuvira era como um colo materno, um abraço paternal. Sentou-se ali e abriu o livro recebido. Tinha um pequeno fragmento de papel marcando uma das páginas. Ele leu: “Bem-aventurados os que choram, pois que serão consolados. – Bem-aventurados os famintos e os sequiosos de justiça, pois que serão saciados. – Bem-aventurados os que sofrem perseguição pela justiça, pois que é deles o reino dos céus. (S. MATEUS, 5:4, 6 e 10.)[3] Naquele dia, quando deu por si o sol já ia alto e ele tinha os olhos pregados no livro.

Muitas das informações ali trazidas angustiavam o seu coração. Quando isso acontecia deitava a correr até que o cansaço o vencesse. Voltava a ler e reler as páginas que o tranquilizavam.

Os ensinos de Jesus são flashes poderosos nas sombras da alma. Inquietam e devassam os escaninhos mais recônditos da mente, impulsionando as criaturas e expungirem situações das quais insistem em ocultar de si mesmas. Com Anacleto iniciava-se esse doloroso processo liberatório de monstros interiores que o atormentavam.

Naquele dia em que se decidiu a buscar Alírio, novamente havia lido e relido a seguinte passagem:


“Frequentemente, o Espírito renasce no mesmo meio em que já viveu, estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes haja feito. Se reconhecesse nelas as a quem odiara, quiçá o ódio se lhe despertaria outra vez no íntimo. De todo modo, ele se sentiria humilhado em presença daquelas a quem houvesse ofendido. Para nos melhorarmos, outorgou-nos Deus, precisamente, o de que necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas. Priva-nos do que nos seria prejudicial.” O Evangelho segundo o Espiritismo Capítulo V - Bem-aventurados os aflitos. Esquecimento do passado³


Uma voz íntima segredava-lhe que o mal que fizera a sua família era algo tão profundo que ele mesmo não tinha a condição de aquilatar, e o que mais o mortificava neste tempo todo é que o sentimento de culpa e o remorso não lhe traziam qualquer sentimento de amor ou de carinho por seus filhos. Isso ele não consegui sentir.

Agora era Alírio que ali estava com aquele livro nas mãos. Também já lera algumas páginas, mas ele estava em péssimo estado de conservação, pois andara rolando na rua com o seu portador.

Foi até a Livraria do Globo adquirir uma daquelas brochuras para si, mas não tinha mais nenhum exemplar. Ficou pensando onde poderia adquiri-lo, na verdade queria dois, porque o de Anacleto estava quase inutilizado. Imerso nas suas indagações sentiu a aproximação de um moço alto, magro, com um sorriso amistoso a estender-lhe um volume.

- Procurava este livro, amigo?

- Sim, mas está em falta.

-Estava. Aqui o tendes. Vim buscar a encomenda desses livros. Posso ceder-lhe um com muito gosto.

- Puxa vida! Nem sei como agradecer-lhe, mas qual o valor, faço questão de ressarci-lo.

- Nem pensar! Vamos combinar o seguinte: O senhor volta aqui quando puder e encontrando a obra, adquira-a e dê a alguém.

- Sim, sim, mas...

- Combinado. Desejo-lhe boas leituras e reflexões. Até outro dia.

- Como é o seu nome, por favor.

- Roberto. Roberto Michelena.



Referências: [1] XAVIER, Francisco Cândido. Emmanuel. Pronto Socorro. Culpa e Liberação. [2] BARBIERI, Maria Elisabeth. Espíritos Diversos. Os Espíritos Contaram. Preparando novos rumos, cap. 10. Fergs Editora. 2020. [3] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Bem aventurado os aflitos, cap. V.

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