Horizontalidade e verticalidade
Vinícius Lima Lousada[1]
Em resposta, o Senhor lhe disse: Marta, Marta, inquieta-te e te agitas a respeito de muitas {coisas}. Porém é necessária uma. Assim, Maria escolheu a boa parte, que não será tirada dela. (Lucas 10: 41-42)[2]
Em Lucas (10:38-42) vamos encontrar Jesus visitando em Betânia a casa de Marta e Maria, de tal sorte que a resposta do Mestre coloca em questão a dialética que costumamos viver, muitas vezes despercebida, entre a verticalidade de nossas buscas espirituais e a horizontalidade da luta cotidiana.
É preciso considerar que Marta e Maria são irmãs de Lázaro que residiam em Betânia[3], povoado situado a três quilômetros de Jerusalém. Na cidade desses amigos, estando desencarnado, Jesus ascendeu às esferas mais altas da Espiritualidade, conforme a narrativa bíblica (Lucas 24:50-53). Situada em região próxima ao Monte das Oliveiras, Betânia era uma rota de peregrinação religiosa comum aos judeus, naquele tempo, quando se dirigiam à Jerusalém.
Na casa desta família, enquanto Marta organizava as coisas para atender a Jesus e seus discípulos, Maria estava sentada aos pés do Mestre, junto dos demais. Observa-se, neste contexto, algo muito peculiar no modo de Jesus agir. Apesar da condição de subalternidade relegada às mulheres, naquela sociedade, ele as tinha em conta de companheiras na construção do Reino. Emmanuel, na obra intitulada Religião dos Espíritos nos informa que
Há vinte séculos, com exceção das patrícias do Império, quase todas as companheiras do povo, na maioria das circunstâncias, sofriam extrema abjeção, convertidas em alimárias de carga, quando não fossem vendidas em hasta pública.
Tocadas, porém, pelo verbo renovador do divino Mestre, ninguém respondeu com tanta lealdade e veemência aos apelos celestiais.[4]
Vejamos que Jesus, com seus ensinos e perspectiva de vida futura eleva as mulheres à sua dignidade intrínseca diante do povo e autoridades e às alça, também, à condição de suas discípulas em um mundo culturalmente machista, onde essa prática não era admitida. É neste contexto que Jesus se encontra na casa de Marta e Maria, compartilhando a mensagem da Boa Nova. Nas palavras de Lucas (10:38-42) encontramos:
Ao prosseguirem {a jornada}, ele entrou em certa aldeia. E certa mulher, de nome Marta, o hospedou. Ela tinha uma irmã, chamada Maria, que estava sentada aos pés do Senhor, e ouvia a sua palavra. Marta distraia-se em torno de muito serviço. Colocando-se perto, disse: Senhor, não te importas que minha irmã me deixe servir sozinha? Dize-lhe, pois, que me ajude. Em resposta, o Senhor lhe disse: Marta, Marta, inquieta-te e te agitas a respeito de muitas {coisas}. Porém é necessária uma. Assim, Maria escolheu a boa parte, que não será tirada dela.
Sobre essa passagem evangélica, Bailey (2016)[5] comenta que a preocupação de Marta, numa perspectiva histórico-cultural, não era tanto que a irmã a ajudasse, mas as implicações da participação de Maria naquelas conversações normalmente apropriadas aos homens, na dinâmica cultura daquela sociedade, considerando a condição manifesta da relação mestre-discípulo pela postura adotada de estar sentada aos pés do Mestre, como faziam os alunos com os seus rabinos.
Portanto, tudo indica que Marta estava preocupada com as convenções sociais (de servir o convidado a agir como era prescrito às mulheres) e, com isso, permanecia distraída das proposições do Reino. Marta situava-se, naquele momento, na horizontalidade das preocupações humanas, embora fosse convocada à verticalidade dos valores espirituais lecionados por Jesus, foco da atenção de Maria, naqueles instantes.
Desta passagem, podemos extrair uma lição edificante para todos nós, nestes dias de tantas distrações postas aos sentidos, de excesso de convites para discussões estéreis, de tantos apelos para a hipervalorização de puerilidades e busca desenfreada de status social que nos fazem perder o foco do que realmente interessa-nos, enquanto Espírito imortal e nos tempos que são chegados.
Assim, façamos um estudo de nós mesmos: a nossa vida mental está mais voltada às questões de caráter horizontal, atreladas ao terra-à-terra ou procuramos conduzi-la sob a perspectiva da vida futura, que aprendemos do Espiritismo, o Cristianismo Redivivo?
Estamos no mundo, vivendo com os homens e mulheres de nossa época, sensibilizados verdadeiramente pelos valores espirituais abraçados ou nos encontramos atados às convenções sociais e aos valores transitórios que nos chafurdam em ilusões?
Diante do tempo, tesouro inestimável ao Espírito reencarnado, procuremos a melhor parte, ocupando-nos de tudo o que nos eleva: o dever, o amor e o conhecimento, alavancas de nosso progresso espiritual consciente.
Tenhamos o atendimento ao dever como meta diária para a qual rumamos com alegria, na certeza de que, pouco a pouco, no caminho do dever estamos atendendo a nossa programação reencarnatória com momentos reeducativos que nos libertam da sombra do passado, através da prova ou da expiação, que serão superadas pela resignação ativa que se efetiva através da atitude reparadora que nos compete adotar, norteada na Divina Lei.
Atentemos à necessidade que possuímos, tendo em vista a verticalização de nossas aspirações, de desenvolvimento da amorosidade e recordemos que quem ama, além de ser leal, se orienta pela retidão, através da qual o ser se esmera em fazer todo o bem possível, obedecendo a regra áurea lecionada por Jesus e, desse modo, zela pelo direito inalienável do próximo à felicidade e à paz.
Ao verticalizar o foco do interesse, a alma anseia por compreender as Divinas Leis, trilhando um caminho de sabedoria que não se institui apenas ao nível de aprendizagem cognitiva, fundamentalmente, se efetiva no cultivo íntimo de conhecimentos superiores que educam os sentimentos e elevam o Espírito, através de atos diários levados a efeito pela deliberação de agir em conformidade com a moral ensinada por Jesus de Nazaré.
No dever, na vivência do amor e na busca da verdade, a alma adquire a melhor parte, ou seja, aquilo que lhe interessa ante a vida futura e esta aquisição verdadeira não pode lhe ser desapropriada porque se torna parte de sua natureza, vocacionada à plenitude.
Evitemos concentrar-nos demasiadamente nas tribulações e agitações da horizontalidade da vida material. Procuremos elevar as nossas aspirações, verticalizando nosso olhar e esforço.
E, desse modo, sigamos atentos ao que nos ensina Kardec:
“Jesus representa o tipo da perfeição moral a que a Humanidade pode aspirar na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo, e a doutrina que ensinou é a mais pura expressão de sua lei, porque, sendo Jesus o ser mais puro que já apareceu na Terra, o Espírito Divino o animava.”[6]
Referências:
[1] Vice-presidente de Unificação da Fergs.
[2] O Novo Testamento. Haroldo Dutra Dias. trad. (pp. 420-421). FEB. Edição do Kindle.
[3] Kaschel, Werner; Zimmer, Rudi. Dicionário da Bíblia de Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil. Edição do Kindle.
[4] XAVIER, Francisco Cândido. Religião dos Espíritos. Pelo Espírito Emmanuel. Rio de Janeiro,
[5] BAILEY, Kenneth E. Jesus pela ótica do Oriente Médio: estudos culturais sobre os evangelhos. Carlos E. S. Lopes. trad. São Paulo: Vida Nova, 2016.
[6] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos (pp. 381-382). FEB Publisher. Edição do Kindle, questão 625.
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