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Kardec e Vicente de Paulo: Zelo e Direitos Sociais




João Paulo Bittencourt Cardozo

Vice-presidente da UME Carazinho e trabalhador

da CE Joanna de Ângelis, de Sarandi



O mês era junho. O ano, 1858. Allan Kardec e Vicente de Paulo, este pelos canais mediúnicos, travam instigante debate a respeito da melhor forma de se exercer a caridade, publicado na íntegra na edição da Revista Espírita de agosto daquele ano (1). O material viria a ser aproveitado para compor o item 12 do Capítulo XIII de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, a bela e profunda mensagem intitulada “A Beneficência”, assinada pelo autor espiritual. As modificações feitas por Kardec para incluir o texto no livro, que é um dos cinco fundamentais, nos ensinam muito sobre o seu zelo na codificação da Doutrina Espírita. E as diferenças de ponto de vista entre os dois a respeito da caridade material dialogam diretamente com importante debate da atualidade sobre Direitos Humanos e justiça social. 

Sim, Allan Kardec fez alterações na mensagem de Vicente de Paulo para incluí-la em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, suprimindo afirmações que, em seu ponto de vista, eram incoerentes com a Doutrina Espírita. Afinal, no que divergiam estes dois grandes amigos da Humanidade? Basicamente em se os chamados maus pobres, ou seja, os que simulam necessidade, merecem ou não receber auxílio. Vicente entendia que sim, sustentando que cabe a quem está em condições de ajudar o fazer sem questionar se a miséria é legítima ou fingida, ficando o que chama de o castigo das falsas misérias ao Criador.  

Kardec entendia que não, e por isso, após ditada a mensagem, fez a Vicente de Paulo a seguinte provocação:

“2. Dissestes que era preciso deixar à justiça de Deus a apreciação da falsa miséria. Parece-nos, entretanto, que dar sem discernimento às pessoas que não têm necessidade, ou que poderiam dar a vida num trabalho honesto, será estimular o vício e a preguiça. Se os preguiçosos encontrassem aberta com muita facilidade a bolsa dos outros, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiros infelizes.

“Resp. – Podeis discernir os que podem trabalhar e, então, a caridade vos obriga a fazer tudo para lhes proporcionar trabalho, entretanto, também existem falsos pobres, capazes de simular com habilidade misérias que não possuem; é para tais que se deve deixar a Deus toda a justiça”. 

A diferença de olhar entre Kardec e Vicente de Paulo dialoga, sim, com o presente, em que o debate se expandiu da caridade eminentemente privada ao campo das políticas públicas e dos direitos sociais. Mas antes de pensar sobre isso, é impossível não revelar o espanto da constatação: Allan Kardec suprimiu colocações de um espírito do patamar de Vicente de Paulo, em nome do zelo que tinha pela Doutrina Espírita. Que, sabia o Codificador, espalharia os seus fundamentos na posteridade nas cinco obras básicas, dentre as quais inquestionavelmente se destaca “O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Nós, espíritas brasileiros, sabemos o quanto.   

No artigo “Os três ‘nãos’ de Kardec e o zelo pela Doutrina Espírita”, publicado no Jornal de Estudos Espíritas (2), Alexandre Fontes da Fonseca analisa o fato como um ‘não’ a um espírito superior, num dos maiores exemplos de cuidado e zelo para com as mensagens mediúnicas. Destaca que todos os espíritas necessitam retirar daí o ensinamento de que se deve, de um ditado mediúnico, só conservar o que a lógica possa aceitar e o que tenha base doutrinária. “Para isso, é importante o adepto do espiritismo aprofundar o estudo da doutrina espírita, para que possa questionar, com respeito, conceitos presentes em mensagens mediúnicas recebidas no Centro Espírita que frequenta, ou em obras subsidiárias de autoria de Espíritos diversos, incluindo aqueles que o movimento espírita aprendeu a respeitar”.

Mais de século se passou e, desde 1988, vigora uma Constituição que prevê, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, inciso III). O debate entre Kardec e Vicente de Paulo é trazido a outro patamar: da caridade material praticada exclusivamente na esfera privada, entre filantropos e religiosos, aos direitos sociais constitucionais, a serem garantidos pela esfera pública. As Constituições democráticas posteriores à 2ª Guerra Mundial acolhem integralmente os direitos de liberdade, de igualdade e de fraternidade, lema da Revolução Francesa que Kardec já conheceu em sua época, mas não teve tempo de ver transformado em Direito.  

Caridade é lei divina, igualdade e fraternidade são leis humanas que lhe estão em harmonia, mas o egoísmo e o orgulho agora, como nos tempos da Codificação, atravancam a sua aplicação prática. “Em resumo, a igualdade é estipulada porque, de fato, somos diferentes e desiguais, para proteger as diferenças e em oposição às desigualdades”, diz um octogenário e lúcido Luigi Ferrajoli em seu reflexivo livro “Manifesto pela igualdade e por uma constituição da Terra” (3). Para este objetivo de combater as enormes desigualdades que todos podemos constatar a olhos vistos, o autor propõe o modelo da renda mínima garantida a todos, desde a maioridade, não vinculada a condições ou contraprestações, para garantir a dignidade pessoal. Este modelo opõe-se ao da renda básica garantida apenas aos necessitados, pela verificação da falta de renda suficiente para sobreviver e outras condições – que é o adotado, por exemplo, no Brasil.

A renda mínima universal é, sim, uma proposição contemporânea e de vanguarda na Filosofia do Direito, uma ideia que há pouco começou a deixar os campos exclusivamente acadêmicos e a alcançar público mais amplo, onde vem gerando reações distintas, especialmente àqueles mais aferrados a paradigmas como trabalho e merecimento. Contudo, como não enxergar, neste diálogo de direitos sociais de igualdade, estes dois interlocutores de 160 anos atrás, quem sabe um defendendo o critério da aferição da necessidade e, o outro, a extensão do direito a todos? Ou será que, no debate atual, não estariam os dois do mesmo lado?

 

Porque as condições da Terra mudaram muito nesses quase 170 anos. As relações de trabalho estão cada vez mais frágeis e informais, e não garantem a emancipação do indivíduo. Grandes empresas são disputadas pelos países, e muitas vezes se instalam naqueles em que os salários são mais baixos e, os direitos, mais precários, buscando maximizar os lucros. Postos de trabalho progressivamente são eliminados pela mecanização e pela tecnologia. E nisso um dos fatores que faz com que muitos jovens não consigam se colocar profissionalmente e prorroguem indefinidamente a saída da casa dos pais, onde permanecem nem trabalhando e nem estudando, sendo por isso conhecidos como a “Geração nem-nem” (4).  

Será que, nesse contexto, Kardec e Vicente de Paulo não estariam, em uníssono, apoiando a tese da renda básica universal como fator de garantia da dignidade pessoal? São questões que remetemos à reflexão dos eventuais leitores. Afinal, um espírita precisa ser, antes de tudo, alguém que tem consciência da realidade à sua volta, porque, mesmo crendo na existência das colônias espirituais, ainda não vive numa delas.     

A partir destas breves reflexões, só resta apelar aos adeptos do Espiritismo que jamais abram mão do bom senso e da lógica, bem como do estudo contínuo e sistemático necessário para exercitá-las. Que, como fez e exemplificou Allan Kardec, não titubeiem em tomar as decisões corretas de acordo com a própria consciência, nem que para isso seja necessário dizer não a quem considere em equívoco. Que jamais se alienem ou percam a consciência da realidade à sua volta.   

E que, no campo da caridade material, no diálogo sempre atual de Kardec e Vicente de Paulo, nos centremos naquilo em que os dois concordaram, e depois veio a ser materializado no Direito: a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais são inaceitáveis, jamais podem ser naturalizadas, e todos os nossos esforços precisam convergir para combatê-las.   

               

(1) Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano primeiro – 1858/publicada sob a direção de Allan Kardec; [tradução de Evandro Noleto Bezerra; (poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima)]. – 4. Ed. – Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2005, p. 335-340.

(2) A. F. da Fonseca, Jornal de Estudos Espíritas 8, 010204 (2020), DOI: 10.22568/jee.v8.artn.010204, https://drive.google.com/file/d/1t_iclCUsMzrqa_uezgbfUgdWUiDB5WMg/view, acesso em 11/08/2024.

(3) FERRAJOLI, Luigi, 1940-. Manifesto pela igualdade e por uma constituição da Terra [recurso eletrônico]/ Luigi Ferrajoli; Sérgio Cademartori. – Dados eletrônicos. – Canoas, RS: Ed. Unilasalle, 2021, p. 10 e 87.

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