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Náufrago em resgate, cap. 2




Somos punidos já nesta vida pelas infrações que cometemos às leis que regem a existência corpórea, por meio dos males decorrentes dessas mesmas infrações e dos nossos próprios excessos. Se remontarmos pouco a pouco à origem do que chamamos nossas desgraças terrenas, veremos que, na maioria dos casos, são a consequência de um primeiro afastamento do caminho reto. Em virtude desse desvio, enveredamos por outro, mau, e, de consequência em consequência, caímos na desgraça.[1]


Voltemos ao ano de 1790, na Ilha da Madeira.

Luiz Fernando olhava os imensos vinhedos que se estendiam a perder de vista na paradisíaca ilha.

Magaldi sorvia com sofreguidão o charuto, enquanto observava o filho que cofiava o bigode e alisava nervosamente a barba, demonstrando o incômodo que o afligia por estar ali em presença do pai. O rico comerciante de vinhos que se estabelecera há muitos anos na Ilha da Madeira e expandiu os seus negócios tornando a marca do seu produto conhecido e apreciado em muitos países.

Luiz era seu único filho, fruto do primeiro casamento que findou com a morte da esposa, há quase sete anos, vitimada por uma doença fatal. Fora um rude golpe para ambos, pois Maria Eugênia era uma alma nobre, que espalhava o perfume da sua generosidade por onde passava. Pessoa simples e alegre fazia dos domínios do marido um lugar bom para todos, empregados, escravos, amigos, familiares.

Os dois primeiros anos da sua ausência foram dolorosos tanto para Magaldi que amava profundamente a esposa, quanto para Luiz Fernando que recém saído da adolescência se viu privado da companhia doce de sua genitora, confidente, amiga, orientadora. Estava em preparação para ingressar na Universidade de Coimbra quando se deu o lamentável evento o que o fez desistir e abandonar a ideia de continuar os estudos, embora os rogos do pai. Começou a nutrir uma surda revolta, pois se sentia injustiçado por Deus, que lhe tirara a mãe tão cedo.

A situação entre pai e filho agravou-se, quando Magaldi decidiu casar novamente. Era um homem dedicado à família e entendeu que necessitava reconstruir o seu lar e prosseguir. Luiz nunca aceitou a decisão.

A madrasta, Ana Catarina, era muito diferente de Maria Eugênia. Muito jovem, cheia de vontades, um temperamento que denotava a superficialidade de valores e um caráter volúvel. Era muito bela e como diziam no círculo de amigos do casal, Magaldi que sempre se ressentira da ausência de uma filha, confundia sentimentos, mimando a esposa, cobrindo-a de joias, atendendo-a nos mínimos caprichos, buscando suprir o afeto que a morte lhe havia arrebatado.

Ana Catarina era manipuladora e inteligente. Em pouco tempo estabeleceu grande domínio sobre o marido que não lhe negava absolutamente nada. A carência afetiva daquele homem maduro foi aos poucos permitindo que uma relação artificial e interesseira se estabelecesse por parte da esposa, embora ele nutrisse por ela sincero afeto.

Luiz era um jovem elegante, culto, embora estivesse ainda com os estudos interrompidos tinha sólida cultura geral, hábito cultivado em companhia da mãe que dele fizera um leitor ávido, o que lhe emprestava uma conversação cativante sobre muitas áreas do conhecimento.

Ana Catarina logo se interessou pelo rapaz e sem escrúpulos passou a fazer jogo de sedução, principalmente durante as longas viagens que Magaldi empreendia a negócios, e nas quais ela o acompanhava de início, mas que depois passou a querer ficar mais na ilha, segundo dizia para cuidar da administração da fazenda e conhecer melhor as demais propriedades, em verdade estendia sua teia sobre Luiz, que percebeu as intenções da madrasta e resistiu, pois tinha uma índole forjada pelos nobres sentimentos do pai e da mãe que lhe exemplificaram desde criança.

Mas os interesses do coração guerreiam sempre e não raro derrubam as barreiras do dever, ainda frágeis nas almas humanas em árdua ascensão. Ana era muito bela e manejava com requinte os seus dons. Eram jovens e a proximidade perigosa em que se demoravam foi minando as resistências do jovem que acabou tornando-se amante da madrasta.

Ele ainda tentou subtrair-se à atração exercida pela esposa do seu pai. Sentia-se culpado pelo relacionamento adulterino e ausentou-se por longos meses, viajou pela Europa remoendo a culpa e buscando anestesiar a consciência. Afundou-se em orgias, gastando o dinheiro do pai em atividades viciosas, bebedeiras, jogatinas, em um desequilíbrio infeliz que aos poucos foi chegando aos ouvidos de Magaldi, pelos conhecidos de longa data. O pai aflito demandou a Lisboa, onde soube estar o seu filho pelas últimas notícias recebidas e o encontrou em estado miserável, era uma sombra do jovem saudável que fora. Com dificuldade extrema, conseguiu vencer a recusa de Luiz em voltar para a Ilha da Madeira, mas finalmente o trouxe de volta. Os conflitos, no entanto, se sucediam, as discussões eram intermináveis, pois o infeliz rapaz estava viciado em álcool. Bebia todos os dias e a proximidade com a madrasta acentuava o seu sofrimento, pois os sentimentos que nutria por ela recrudesceram, mas não eram correspondidos.

Ana era destas mulheres que submetia o coração a sua ambição, ao seu interesse de poder. Quando sentiu que a relação com o enteado poderia colocar em risco o casamento bem sucedido, a posição de destaque na sociedade, a vida luxuosa, recuou e passou a rejeitá-lo. Via no caráter do moço um empecilho as suas sórdidas pretensões que era afastar Magaldi do caminho e concretizar o relacionamento com o filho. Mas, logo viu que o amante era escrupuloso demais para tal intento.

Naquela manhã, após mais uma discussão na noite anterior, Magaldi olhava para Luiz e os olhos se anuviaram de lágrimas. Pensava qual seria a dor tão grande que se aninhava naquele coração. Sabia o quanto a morte da mãe o afetara. Também entendia que o seu casamento não caíra nas graças do filho, mas aos poucos via uma aproximação entre ele e Ana Catarina. Não conseguia entender a razão de tamanho desencontro, o distanciamento, as brigas constantes, o vício.

Seu coração de pai estava apertado. Todas as tentativas para a reaproximação com o filho querido eram frustradas pela postura arredia de Luiz.

Nas suas orações sentia que sua amada Maria Eugênia buscava lhe consolar e fortalecer o ânimo para não desistir do filho querido. Tinha uma formação religiosa sólida no catolicismo, tanto quanto era possível de compreensão e vivência no seu tempo. Julgava-se religioso, devoto e o seu coração sempre era tocado profundamente pelos sofrimentos humanos. Muitas vezes ouvira dos seus pares que era um péssimo exemplo, porque tratava bem os escravos, dando-lhes regalias que criavam, muitas vezes, levantes nas propriedades vizinhas. Ele e Eugênia pensaram e conversaram muito em libertar os cativos, porém não tiveram força para se opor ao consenso social da época e depois com a morte da piedosa mulher o assunto ficou esquecido.

A percepção de Magaldi era legítima. Maria Eugênia segurou-lhe as mãos, infundindo-lhe energias que foram balsamizando as aflições do amargurado pai. Sentindo que as lágrimas estavam prestes a jorrar, ergueu-se da cadeira e ganhando o vasto jardim fronteiro da casa, deu azo ao choro que descongestionava o seu coração sofrido.


Referência: [1] Kardec, Allan. O livro dos espíritos (p. 479). FEB Publisher. Edição do Kindle. Questão 921 - Comentário

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