Náufrago em Resgate, cap. 7
Estão próximos os tempos, repito-o, em que nesse planeta reinará a grande fraternidade, em que os homens obedecerão à lei do Cristo, lei que será freio e esperança e conduzirá as almas às moradas ditosas. Amai-vos, pois, como filhos do mesmo Pai; não estabeleçais diferenças entre os outros infelizes, porquanto quer Deus[1]
A notícia já se espalhara pelas galerias do presídio. Eram muitas as narrativas advindas dos interesses opostos de cada grupo. Tudo indicava que o agente tinha se suicidado, mas os que viam no fato uma oportunidade de contraditar as diretrizes de não violência estabelecidas naquela instituição, suscitaram dúvidas quanto à possível participação de algum detento no doloroso fato.
O “russo ", como era conhecido o morto, era integrante do grupo avesso à forma estabelecida de tratamento humanizado para com os presos. Muitas vezes foi advertido pelo uso de palavras de baixo calão e pela truculência com que se comportava, mesmo sabendo que tais atitudes não seriam chanceladas pela administração. Era uma alma irritadiça, grosseira, de difícil trato para com os colegas, que se sentiam mal na sua presença. Seus modos primitivos, rescendiam na forma de andar, de falar e até mesmo na exsudação física, pois exalava um mau cheiro por onde passava. Era visto muitas vezes derramando água escaldante nas plantas tão bem cuidadas pelos demais colegas e até pelos detentos. Jogava detritos nas paredes e nos cantos das galerias, num visível descontrole da sua agressividade.
Pois sim, o russo foi encontrado na madrugada do seu plantão pendurado - enforcado - nas vigas do pavilhão da oficina. Estranhamente, todos os trabalhos feitos ou em realização pelos detentos, e que ainda estavam naquele recinto foram encontrados destruídos, retalhados qual se uma fera tivesse lançado suas garras sobre eles.
Magaldi e a sua equipe estavam reunidos com César, avaliando o caso e dele retirando o aprendizado possível.
- Irmão Cesar, sabemos que o suicídio tem causas multifatoriais e que há no suicida uma energia violenta, que não podendo extravasar contra os seus semelhantes volta-se contra si mesmo É o caso do infortunado agente?
- Como já conversamos outras vezes, tenho me dedicado a estudar o ímpeto que se estabelece e domina as emoções humanas quando se tem a possibilidade de punir o próximo pelos erros cometidos. Identifica-se que a criatura se satisfaz e se locupleta ante às visões grotescas das torturas e sevícias que impõe ao seu semelhante, sem se dar conta de que tais atitudes lhe desnaturam a própria condição de humanidade. Comecei a elaborar escritos sobre a questão desde os idos no século XVIII, em que as penas eram crudelíssimas e as masmorras e tribunais concorriam entre si para engendrar os meios de suplícios mais tenebrosos e que impingissem maior sofrimento aos infelizes que lhes caíssem presas.
Continuava Cesar:
- O agressor, mesmo chancelado pela lei que é promulgada pelo mais forte, acaba por destruir-se, causando nas texturas sutis do corpo espiritual as mesmas feridas que inculca ao seu igual. Presenciando a desencarnação de algozes e carrascos ao longo dos séculos surpreendemos-lhes os tormentos íntimos e as enfermidades mentais que os afligem, pois a visão dos prisioneiros cujos corpos foram por si ou a seu mando destroçados, os gritos dilacerantes se imprimem nos seus arquivos conduzindo-os às trevas da loucura por largos períodos reencarnatórios.
- Quando propunha nos meus textos o abrandamento das penas, a humanização dos processos, o que me valeu severas perseguições, estava não apenas buscando beneficiar os criminosos, mas evitar que as autoridades que os sentenciaram a tamanhos tormentos não enveredassem pelo caminho do crime consentido por estar ao abrigo da lei. Hoje, temos uma legislação que já avançou muito no sentido de estabelecer a reeducação do criminoso e impedir a crueldade das penas, porém o clamor de muitos ainda se eleva para propor a retaliação e conferir à Justiça o timbre da vingança.
- Nosso infortunado irmão trazia consigo o signo do carrasco. Passou por lugares onde lhe era permitido o extravasar da violência e da desumanidade, facilitando-lhe que esculpisse, na sensibilidade embotada, o quadro pavoroso de deserção da vida. Aqui, sob a vigilância atenta de Alcebíades, o administrador, ele foi refreando os impulsos, sem, no entanto, aproveitar a chance de reeducar-se e acabou se intoxicando com o próprio veneno dos pensamentos e sentimentos, até não suportar mais a lava escaldante do ódio que desenvolveu por tudo e todos, sendo ainda alvo fácil dos adversários que o localizaram e o encaminharam para o ato malsinado do suicídio.
Nesse momento, Cesar, plasmando uma grande dela fluídica convidou o grupo a acessar as cenas dolorosas protagonizadas pelo suicída. O “russo” debatia-se verdadeiramente em um mar de miasmas como se fosse lava da qual buscava se erguer, gritando impropérios e à medida que se debatia, novamente afundava-se nos redemoinhos.
Diante de tal cena, todos entramos em estado de oração, condoídos pelo sofrimento daquela alma que engendrou com suas ações o difícil momento ora vivido. Estávamos assim recolhidos em profundo estado de entrega, externando a misericórdia de que éramos capazes, quando ouvimos uma voz suave que parecia ser de uma menina, dizendo: - paizinho, eu estou pedindo a Jesus por ti. Paizinho, como eu te amo e como tu vai me fazer falta...
Uma oração da Ave Maria se alterou no ambiente.
O Infeliz suicida pareceu sentir e ouvir aquele preito amoroso, e foi cessando as imprecações, ao mesmo tempo em que as ondas miasmáticas diminuíram a intensidade, permitindo que ele se erguesse e saísse em desabalada carreira, sumindo nas sombras.
César convidou-nos a continuar a oração, fechando a grande tela para que nossas reflexões prosseguissem sobre o caso
“O limite que o legislador deveria fixar para o rigor das penas, parece residir no sentimento de compaixão, quando este começa a prevalecer sobre qualquer outro, no ânimo dos espectadores de um castigo, reservado mais para eles do que para o próprio réu.”[2]
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