O Centro Espírita e a busca pela coerência doutrinária

Vinícius Lima Lousada[1]
Conseguintemente, seitas poderão formar-se ao lado da Doutrina, seitas que não lhe adotem os princípios ou todos os princípios, porém não dentro da Doutrina, por efeito de interpretação dos textos, como tantas se formaram sobre o sentido das próprias palavras do Evangelho. É este um primeiro ponto de capital importância. - Allan Kardec[2]
Allan Kardec, ao sistematizar os dados de suas pesquisas no campo da Ciência do Infinito e publicizar as análises feitas em suas obras, deu início, na Terra, ao Movimento Espírita (ME) propriamente dito e, antes mesmo de fundar a Sociedade Espírita de Paris (1º/04/1858), passou a editar a Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos (1º/01/1858) que objetivou se constituir em um periódico que pudesse compartilhar tudo o que fosse de interesse do Espiritismo. No mês de dezembro de 1868, por exemplo, o mestre publicou na Revue um arrazoado sobre a organização do ME que ele denominou por Constituição Transitória do Espiritismo. O texto também aborda a questão da unidade doutrinária e os cismas originados em divergências de interpretação.
Em nosso caso, nesta reflexão sobre a manutenção da coerência doutrinária no Centro Espírita (CE), abordaremos a questão dos cismas. Para isso, é importante considerar que, dentro da complexidade do Movimento Espírita (ME), o CE é a sua base fundamental e está sempre presente nele como laboratório de vivências e aprendizagens em suas diversas circunstâncias. Da mesma forma, o ME está culturalmente inserido no CE, por meio de suas construções coletivas, contribuições consensuadas, campanhas e práticas institucionalizadas.
Segundo o princípio hologramático[3] do pensador francês Edgar Morin, em um sistema, cada parte compõe o todo, e o todo também está presente em cada parte. Assim, devemos reconhecer que o CE é co-responsável pela coerência doutrinária no ME, da mesma forma que o ME, por meio dos Órgãos de Unificação, também compartilha dessa responsabilidade, tendo em vista a missão do Consolador.
Mas, o que podemos entender por coerência doutrinária no contexto espírita? Milani (2024, p. 8) informa que “(...) a coerência doutrinária espírita se caracteriza pela concordância e nexo com os fundamentos do Espiritismo, o ponto central desta discussão vincula-se ao corpo teórico que identifica a própria Doutrina Espírita.”[4] Assim, o espírita, o centro espírita ou uma entidade federativa guarda coerência doutrinária em seu discurso, ações, projetos e programas quando estes estão alinhados à base filosófica do Espiritismo.
O cultivo sistemático de alguma incoerência doutrinária, ou seja, a produção de discursos, ações, projetos e programas de trabalho dissonantes de nossas bases filosóficas, nas relações “centro-movimento espírita” ou “movimento-centro espírita” pode fragilizar o estudo do Espiritismo, sua prática, vivência e divulgação, vindo a reverberar em desvio de sua missão de esclarecimento racional no campo da fé e desfiguração, em escala maior ou menor, do ME.
Nesse sentido, Kardec aborda sinteticamente a questão dos cismas, apresentando um verdadeiro alerta para que tenhamos autovigilância cotidiana em termos de coerência doutrinária. Os cismas são rupturas ou divisões no seio do ME manifestadas no campo das ideias e das práticas, onde determinados indivíduos (encarnados e desencarnados) produzem dissenção para fazer valer a sua opinião pessoal em torno de alguma questão e criar conceitos próprios, à revelia do método da Ciência Espírita, ou ainda, se dispõem a impor práticas, no contexto do centro ou do ME, que destoam dos princípios filosóficos da Doutrina.
Kardec apresenta estratégias para evitar o surgimento de seitas dentro do ME. Contudo, com bom senso, admite ser impossível impedir divisões fora desse contexto. Em seu lúcido raciocínio, aponta para a ideia de que essas seitas, baseadas em ideias personalistas, não possuem o mesmo status de Espiritismo, pois elas refletem opiniões individuais em contraste com o ensino coletivo dos espíritos.
A primeira estratégia adotada por Kardec foi procurar deixar claro, sem interpretações dúbias em suas obras, conceitos, princípios e consequências da Doutrina Espírita. Clareza filosófica e objetividade científica são marcas da obra kardequiana, inclusive propondo uma terminologia específica com base nos ensinos dos Espíritos Superiores.
A segunda estratégia de Kardec é que o desenvolvimento da Doutrina Espírita e, poderíamos dizer, do próprio trabalho do centro e do ME, não deve se afastar das ideias práticas, ou seja, daquelas que podem ser verificadas ou realizadas. Jamais caberia adotarmos concepções e crenças de campos distintos do conhecimento apenas por parecerem promissoras ou concebíveis no plano das ideias, sob o risco de arrastar o ME ao descrédito quando a Ciência e a vida prática demonstrassem suas fragilidades. O Espiritismo se assenta filosoficamente nas Leis Divinas, não em especulações transitórias.
A terceira estratégia adotada consiste na disseminação da ideia de que o Espiritismo é uma ciência progressiva, dinâmica, jamais dogmática. Sobre o dogmatismo, lembra-nos Emmanuel que
Os novos discípulos do Evangelho devem compreender que os dogmas passaram. E as religiões literalistas, que os construíram, sempre o fizeram simplesmente em obediência a disposições políticas, no governo das massas. Dentro das novas expressões evolutivas, porém, os espíritas devem evitar as expressões dogmáticas, compreendendo que a Doutrina é progressiva, esquivando-se a qualquer pretensão de infalibilidade, em face da grandeza inultrapassável do Evangelho.[5]
Dessa forma, alerta o benfeitor que não nos cabe mais qualquer dogmatismo no campo da fé, o que nos permite dizer que a busca pela coerência doutrinária na Seara Espírita é uma atitude racional, dialógica, problematizadora, alicerçada no estudo e na pesquisa, constituindo-se em um honesto esforço moral e intelectual de reconhecimento da presença possível de imprecisões de interpretação de nossa parte, impondo-nos o dever pessoal e institucional de admissão de que não somos infalíveis e de cultivo do pensamento crítico, tendo em vista o alinhamento do que falamos e fazemos em relação ao escopo filosófico do Espiritismo, jamais mesclando-o com perspectivas dele dissonantes.
A progressividade do Espiritismo[6] é um elemento comum ao caráter da Revelação Espírita, como bem lembra Kardec, em A Gênese, mas ela não se dá a qualquer preço ou sem método, o que permitiria a presença de extravagâncias conceituais e a adesão a modismos que desfigurariam sobejamente a mensagem que deve ser popularizada através do CE, ainda que a Doutrina dos Espíritos não anseie por proselitismo.
Antecipada pelo Codificador, a progressividade do Espiritismo está no diálogo com a Ciência, por sua natureza, e se fundamenta no controle universal do ensino dos Espíritos, como registramos em O Evangelho segundo o Espiritismo:
“A única garantia séria do ensino dos Espíritos está na concordância que exista entre as revelações que eles façam espontaneamente, por meio de grande número de médiuns estranhos uns aos outros, e em diversos lugares.[7]
Assim, novos conceitos só seriam incorporados ao contexto epistemológico do Espiritismo se atendessem a esse critério, sendo, naturalmente, submetidos ao crivo da razão, à pesquisa e à construção coletiva do conhecimento. Pensemos nisso tudo e cuidemos do que nos cabe na busca de coerência doutrinária em nossos labores de estudo, prática, vivência e divulgação do Espiritismo.
Referências:
[1] Vice-Presidente Doutrinário da Fergs.
[2] KARDEC, Allan. Constituição transitória do Espiritismo: III. Cismas. In: Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos: Ano décimo primeiro – 1868/ publicada sob a direção de Allan Kardec; [tradução de Evandro Noleto Bezerra; (poesias traduzidas por Inaldo Lacerda Lima)]. – 3.ed. – 1.imp. – Brasília: FEB, 2019, p. 483-487.
[3] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Eliane Lisboa. trad. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 88.
[4] MILANI FILHO, Marco Antonio Figueiredo. Coerência doutrinária espírita: limites e desafios. in: Jornal de Estudos Espíritas. Volume 12, 2024, Campinas, p. 1-10.
[5] XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. FEB Publisher. Edição do Kindle, questão 360.
[6] Avisamos ao leitor que pretendemos dar maior desenvolvimento ao tema no próximo artigo.
[7] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. FEB Publisher. Edição do Kindle, Introdução, item II - Autoridade da Doutrina Espírita - Controle universal do ensino dos Espíritos.
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