O filho mais velho, o segundo andar (parte 2)
25
O seu filho mais velho, porém, estava no campo. Assim que chegou e se aproximou da casa, ouviu música e danças.
26
Convocando um dos servos, informava-se sobre o que seria isso.
27
Ele lhe disse: O teu irmão chegou e teu pai sacrificou o novilho cevado, porque o recuperou saudável.
Nunca havia música ali, ou qualquer festa, no mundo pacato do pai. Porém, aconteceu! E, justamente na ausência do filho mais velho, enquanto ele fazia a única coisa que sabia fazer, e que imaginava ser o que seu pai mais valorizava na vida: trabalhar e cumprir as regras. No entanto... Seu irmão voltou, e seu pai matou o novilho gordo…
O que significava isso? O que significou sua vida até então? O que o pai realmente queria e valorizava?
Então, ele não era o filho que causava a maior alegria para o pai? Ele havia obedecido às regras. As regras que o pai tanto valorizava.
Será que era por isso que o pai se tornara triste desde o dia que o irmão ingrato o desonrou e não quis mais pertencer à família?
O pai sequer o esperou para começar a festa, ou pelo menos perguntou para ele se concordava em acolher o irmão. Simplesmente foi ignorado. Uma festa para o filho pródigo, para seu “ex-irmão", era a derrubada de toda a visão positiva do seu idolatrado pai. Nunca tivera nenhum sentimento hostil em relação ao patriarca, somente respeito e obediência. Esforçou-se para ser o que o pai esperava dele, ou pelo menos o que ele pensava que o pai esperava. Foi servil, desconheceu paixões e preferências pessoais, cumpriu todos os protocolos para ser escolhido como o preferido. Mas, naquele único dia feliz na aldeia, viu que os fatos não confirmam isso.
Enquanto o mais velho trabalhava, o outro vivia prodigamente, gastava dissolutamente, e a alegria do pai retornou, instantaneamente, com o retorno do filho mais novo. Não aguardou sequer o filho mais velho retornar de suas obrigações diárias: o desgastante trabalho que garantia o sustento de toda a aldeia. A festa começou antes dele chegar e o pai sequer o consultou a respeito do que iria acontecer.
28
Ele ficou irado e não queria entrar. O seu pai, porém, saindo, o exortava.
29
Em resposta ao seu pai, disse: Eis que te sirvo há tantos anos, jamais negligenciei um mandamento teu, e nunca me deste um cabrito para deleitar-me com meus amigos.
30
Quando chegou este teu filho, que devorou os teus recursos com prostitutas, sacrificaste para ele o novilho cevado
"Ele ficou irado e não queria entrar.
A ira aparece na sua relação com o pai. Entrou em contato com a raiva que sentia do pai. O motivo? Ele próprio o diz:
“Eis que te sirvo há tantos anos, jamais negligenciei um mandamento teu...”
Segundo o que ele disse, não trabalhou porque escolheu ficar junto ao pai como um filho, imaginando que seria o melhor para ele mesmo. Sente-se um escravo do pai, e como todo o encarcerado odeia o seu carcereiro, sua relação com seu pai não foi de amor, mas de uma permanente tentativa, sempre frustrada, de conquistar desesperadamente seu amor. Sempre se frustrou porque já começou mal. Achou que agradaria o pai fazendo o que imaginava que se esperava dele. Deixou de ser um filho como um filho deve ser, espontâneo e confiante do afeto de seus pais e tornou-se um escravo, um serviçal. Esse é o pior tipo de escravidão: da mente. Em sua fantasia, construiu a ideia de que estava agradando. De acréscimo, quando o pai pedia alguma coisa, nunca o desobedecia. Imaginava que, assim, o pai o admiraria. Tudo isso, dentro de sua mente.
Triste ilusão, a admiração não vem da obediência e sim, da espontaneidade. Quando ele abdicou de ser um filho espontâneo e autêntico, e passou a fazer apenas o que julgava ser do agrado do pai, tornou-se invisível e simplesmente seguiu a executar ações mecânicas em um dia a dia monótono e repetitivo. Não desenvolveu a capacidade de ser ele mesmo, foi o que pensou que deveria ser, diante do olhar do pai idealizado.
Foi o pai que pediu isso dele?
A parábola dá a entender que não. Ele, como aquele filho obediente, simplesmente, infere que isso era esperado de um filho bonzinho, e tratou de ser assim. O filho mais velho é um bom exemplo de alguém que não é ele mesmo, o que Winnicott chama de falso self, assim como todas as pessoas que desconhecem os próprios desejos e inquietações e se encaixam nos ambientes fazendo o que todo mundo faz.
Então eu volto a máxima: Ser antes de Fazer. O Ser tem que se desenvolver antes de Fazer. E, finalmente, a criança domina até mesmo os instintos, sem perda de identidade do self.
(Winnicott D. (2021) Tudo começa em casa. São Paulo. Ubu Editora, pág. 46)
Além disso, tinha inveja da relação do pai com o irmão mais novo, mesmo na ausência desse. Podemos imaginar que o pai nunca mais foi o mesmo desde que um dos filhos partiu em direção ao desconhecido. Não é difícil cogitar isso pela reação que o pai teve ao perceber seu retorno:
“Estando ela ainda longe, seu pai o viu, compadeceu-se, correu, lançou-se sobre o pescoço dele e o beijou repetidamente.”
Chama a atenção que a parábola diga que "Estando ainda longe, seu pai o viu…” Fica a ideia de que nunca deixou de olhar para a estrada. Estava esperando, desejando o retorno do filho querido. Nunca foi atrás daquele, mas nunca desistiu de esperar. Ansiava pelo seu retorno, tanto assim que ao vê-lo correu para seu filho, e o abraçou e beijou.
Podemos imaginar o pai com uma roupa que não era própria para correr, assim como, provavelmente, não fosse nada comum de um patriarca, ancião, sair em disparada na direção do filho que foi embora de forma desrespeitosa… e o abraçou e beijou.
Bastou o irmão voltar e o pai demonstrou seu afeto retido. A comemoração do pai pelo filho ingrato foi autêntica. O mais velho sente muita raiva do pai, e muita inveja do irmão…
Quando chegou este teu filho…
Esse teu filho é a perfeita expressão da inveja, indica que o pai e o outro filho são íntimos, e ele está fora disso. Entre o pai e o irmão mais novo predomina uma relação afetiva, entre ele e o pai uma relação de serviço. Estava claro: o pai tinha um afeto muito especial pelo seu irmão. Possivelmente, foi assim que ele pensou.
...devorou os teus recursos com prostitutas, sacrificaste para ele o novilho cevado.
A inveja tem motivos bastante secretos, normalmente se revelam quando alguém próximo se permite viver prazeres proibidos. Por serem proibidos, são cobiçados. A sexualidade, atributo fundamental da condição humana, é o primeiro motivo de condenação e pecado no conceito religioso, pelo menos das religiões conhecidas em nosso mundo ocidental. Na cultura hebraica não era diferente ao tempo de Jesus. Em nosso estudo seria mais ou menos assim:
O filho mais velho também gostaria de sair e gastar, conhecendo novas paisagens, mas reprimiu esse desejo escondendo de si mesmo, e condenou naquele que se permitiu viver a experiência. Ao ficar sob a obediência dos protocolos da aldeia, imaginou que ao renunciar seus desejos teria o amor do pai e herdaria o respeito de todos. Só que esqueceu de um detalhe, nunca chegou a perguntar para o pai se era assim que funcionava. Negociou essas condições apenas consigo mesmo, dentro de sua própria cabeça, tudo parecia ser do jeito que ele pensava. O que ele não esperava é que a primeira reação do pai no retorno do irmão fosse um churrasco festivo na aldeia. O pai parece ter acolhido o filho e expandido para todos sua felicidade. Todos, menos para o filho mais velho que trabalhava mais que todo mundo e não havia chegado ainda em casa. Quando se aproxima da aldeia encontra uma festa em andamento e fica sabendo pelos que lá estão, que uma festa, nunca antes realizada, havia começado graças ao retorno do seu irmão mais novo, que havia retornado ao lar.
Inveja, ira… O que o filho mais velho fará com emoções tão negativas e indesejadas? Esta história revela outras surpresas!
Comentários