O pai, o terceiro andar (parte 2)
"Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou."
No quadro de Rembrandt à esquerda e acima do pai há uma figura de mulher. Dentro de uma especulação espírita, podemos pensar que seria a mãe desencarnada que o está inspirando? Seja como quisermos entender, podemos pensar que é a figura feminina que lhe inspira de dentro do seu coração. O pai não é apenas um homem, no sentido do que se espera de um homem comum, mas um ser humano completo na sua integralidade, que equilibra essas duas polaridades necessárias à harmonia psíquica e à saúde mental.
Portanto, independente de a bissexualidade biológica ser discutível, a bissexualidade psicológica é evidente: somos filhos de uma mulher e de um homem. Salientamos aqui que, mesmo na ausência do pai, esta ausência tem uma existência psíquica, e o pai ausente - de uma forma ou de outra - será um objeto psíquico presente no mundo interno do adolescente.[1]
Existe gravado no psíquico, o binômio do masculino e do feminino. De tal modo que essas duas possibilidades interagem permanentemente. O espiritismo ainda acrescenta que o Espírito ao reencarnar carrega consigo as marcas herdadas de si mesmo, asseverando que em múltiplas encarnações o Espírito leva consigo as experiências de ter sido homem e mulher, em variadas oportunidades.
Há pais que receiam perder o respeito se forem afetivos demais com seus filhos. É exatamente o contrário o que se passa quando isso acontece. Jesus está ensinando isso na Parábola dos Dois Irmãos. A afetividade não é atributo de uma mulher, e sim da experiência afetiva que se desenvolveu dentro do ser humano de qualquer sexo. Muito ao contrário de denotar fragilidade, demonstra fortaleza.
Em Winnicott temos o conceito de “mãe suficientemente boa”, como uma ideia de que no acolhimento inicial o bebê necessita de uma provisão de cuidados afetivos e empáticos que sejam favorecedores de desenvolvimento. O conceito de “mãe” pode ser ampliado para a noção de “ambiente”, ou de mãe como função, ou seja, de alguém de qualquer sexo que consiga amar e cuidar suficientemente bem do bebê em um ambiente afetivo empático e protetor.
A tendência para amadurecer é, em parte, herdada. De uma maneira complexa (que tem sido muito estudada), o desenvolvimento, especialmente no início, depende de um suprimento ambiental suficientemente bom. Pode-se dizer que um ambiente suficientemente bom é aquele que facilita as várias tendências individuais herdadas, de tal forma que o desenvolvimento ocorra de acordo com elas…
Pode ser muito útil postular que o ambiente suficientemente bom começa com um alto grau de adaptação às necessidades individuais do bebê. Geralmente a mãe é capaz de provê-lo, por causa do estado especial em que se encontra, o qual denominei “preocupação materna primária”…
A adaptação vai diminuindo de acordo com a necessidade crescente que o bebê tem de experimentar reações à frustração. A mãe saudável pode retardar sua função de não conseguir se adaptar até que o bebê tenha se tornado capaz de reagir com raiva, em vez de ficar traumatizado pelas incapacidades da mãe. Trauma significa quebra de continuidade na existência de um indivíduo. É somente sobre uma continuidade não existir que o sentido do self, de se sentir real, de ser, pode finalmente se estabelecer como uma característica da personalidade do indivíduo. [2]
Podemos pensar que na Parábola dos Dois Irmãos o pai exerceu junto ao filho pródigo uma atitude “suficientemente boa”, porque o recebeu de modo empático, acolhedor, exatamente da maneira como este necessitava, na sua intimidade, para continuar desenvolvendo aptidões a partir das experiências que acumulara.
Não é apenas na condição do bebê que acontece essa experiência de desenvolvimento, mas ao longo da vida toda, uma vez que o ser humano continua necessitando de braços acolhedores, “suficientemente bons”, a fim de prosseguir na sua vocação de crescimento e progresso. Podemos dizer que só há desenvolvimento mediante o envolvimento de um ser com outro, pois ninguém se desenvolve sozinho. A denominação de “suficientemente bom” de Winnicott é por demais oportuna, porque pressupõe a ideia de que deve ser apenas “suficientemente bom”, ou seja, que não atenda no extremo de uma gratificação excessiva, ou além do que convenha. Poderíamos conceber a noção de que essa gratificação é mediada por pitadas de realidade, ou que contenha algum grau de incompletude, exatamente para não anular o potencial de desenvolvimento do outro, que sendo atendido totalmente de fora para dentro, ficaria infantilizado.
O pai corre para seu filho, o abraça e beija. Ele sabe que está retornando, não o mesmo filho que saiu, mas um filho em vias de transformação. Um filho que vivenciou duras experiências, que foi arrebatado de sua ingenuidade infantil, que teve de se dobrar à realidade e, mesmo assim, retorna envergonhado, pedindo amparo, fecundado pela humildade, a primeira e mais importante das virtudes, pois sem ela nenhuma outra tem possibilidade de surgir.
O pai da parábola sabe, empaticamente, que o filho que retorna não necessita se sentir culpado e sim amparado, porque nesse momento de sua vida ele está construindo algo genuinamente novo dentro dele. Um aprendizado que somente com a própria experiência podemos galgar. Não há conhecimento teórico anterior, ou qualquer tipo de aconselhamento, que possa atingir esse verdadeiro saber.
Com a teoria podemos conhecer, mas somente com a vivência podemos saber.
É por esse motivo que algumas pessoas, que apresentam muitos conhecimentos, eventualmente, surpreendem com atitudes inesperadamente contraditórias em face do que conhecem, porque é no viver, no experimentar a realidade, que o saber é verdadeiramente gestado e constituído.
Se o pai o tivesse culpado ou mencionado algum tipo de crítica no momento que ele voltou, isso seria uma humilhação para o filho, o que acarretaria mágoa e ressentimento. A culpa já vinha na bagagem do próprio filho.
Acolher é a única atitude pertinente e suficiente.
Referências:
[1] Outeiral J. (1994) Adolescer: Estudos Sobre Adolescência. Porto Alegre. Artes Médicas, pág. 22.
[2] Winnicott D. (2021) Tudo começa em casa. São Paulo. Ubu Editora, pág. 22.
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