Siá Tonha cap. XXIX - Expiação II
Em virtude da lei do progresso, que dá a toda alma a possibilidade de adquirir o bem que lhe falta, como de despojar-se conforme sua vontade e seus esforços, resulta que o futuro ´e aberto a todas as criaturas. Deus não repudia nenhum de seus filhos; ele os recebe em seu seio à medida que alcançam a perfeição, deixando assim a cada um o mérito de suas obras.[1] O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo - Código penal da vida futura, item 4º.
A vista do Rio Guaíba por si só era reconfortante. Anacleto se sentia chegando em casa. Nunca pensou que aquela cidade onde ele passara tanta dor, solidão, necessidades de toda ordem lhe fizesse sentir alguma soma de bem-estar, e era o que experimentava agora, uma sensação de abrigo.
Saiu da rodoviária e foi caminhando, olhando cada prédio, cada praça, cada rua até a pensão na qual morava, e parecia que estava vendo pela primeira vez os lugares por onde passava.
A viagem fora longa, estava com fome e o corpo moído pelos solavancos do ônibus na estrada. Comeu a refeição servida, deitou-se e dormiu profundamente, sem pesadelos ou sobressaltos.
A manhã nublada encontrou-o nos degraus da porta do Dr. Alírio. Estava ansioso para contar ao amigo da sua viagem e das novidades todas. O médico ficou feliz ao revê-lo, pois não fazia ideia do que tinha acontecido desde aquele dia em que interrompera a conversa com ele e sumira.
Conversaram muito, trocaram impressões e Anacleto sentia-se mais leve e consolado conversando com aquela alma que recolhia as suas palavras, ora em silêncio, ora fazendo apontamentos aqui e acolá.
E os dias foram passando.
Certa manhã de sábado quando se preparava para sair na ronda semanal com os doentes da rua, Alírio apareceu na pensão, tinha o ar sério e carregado.
- Doutor, o senhor aqui. Aconteceu al...
- Aconteceu! Disse-lhe o médico – sente-se!
- Ontem fui chamado ao Hospital, porque internaram uma mulher que estava agonizando e pedia para falar comigo, com urgência. Fez uma pausa e complementou... era a Lucélia, sua esposa!
Anacleto mexeu-se na cadeira, revelando desconforto. Fez menção de se levantar.
- Não, não, espere! Nada do que você disser ou fizer importa mais.
- Mas como ela sabia que o senhor me conhecia?
- Nesses dias em que você esteve fora eu voltei a avistar-me com ela, na rua, no mesmo ponto onde a encontramos da outra vez. Enquanto a atendia fui perguntando sobre a vida dela, a família. Falou-me de um casamento infeliz, de traições. Tinha muitas dores e sofrimentos, creio que não falou nem metade deles. Voltei lá por três dias consecutivos, ofereci ajuda para colocá-la em um abrigo público, mas ela recusou. Na última vez em que conversei com ela disse que lhe conhecia. Ela segurou as minhas mãos e chorando confidenciou que por muitos anos odiou você, mas que agora só queria morrer em paz, e que quando eu te encontrasse dissesse que ela pedia perdão e que te perdoava, também.
- Doutor, eu já me debati tanto com esse assunto. Até quero conversar com ela, colocar tudo em pratos limpos, pois tem coisas mal explicadas nisso tudo.
- Pois é, meu amigo, mas agora é tarde. Lucélia morreu. Talvez essa carta que me entregou esclareça alguma coisa para você.
- Anacleto ficou com o olhar perdido, sentia um sabor amargo de derrota. Parece que sempre que se decidia a fazer algo para se redimir um pouco do passado cheio de erros, chegava tarde. Parece que a tragédia e a morte rondavam os seus passos. Segurou a cabeça entre as mãos e permaneceu assim, experimentando um mal estar intenso, como se afundasse num poço escuro e profundo.
O remorso é um punhal cuja persistência ferindo os tecidos da alma não tem outro bálsamo que não seja a reparação das faltas e Anacleto via, cada vez mais distante, essa possibilidade.
Foi trazido de volta das suas cogitações pela voz do amigo que lhe estendia um envelope no qual ele mesmo pusera algumas folhas de papel amassadas e um pouco sujas. Era uma carta de Lucélia. Antes de expirar ela a entregara para Alírio, pedindo que fizesse chegar até as mãos do ex-esposo.
Ele ficou olhando, por largo tempo para aquela caligrafia que conhecia bem, embora com sinais da instabilidade da mão que a grafou, era inconfundível a letra de Lucélia. Os traços de covardia que o acompanharam pela vida a fora, fazendo-o fugir de compromissos e deveres, gritavam-lhe no íntimo: não leia, para que você vai querer saber disto, afinal ela está morta.
- Leia, Anacleto, liberte-se dos fantasmas! Era Alírio que, fazendo a leitura do conflito travado na alma do amigo, o amparava na decisão difícil.
Era uma carta breve, que rememorava a noite em que ela fora surpreendida em adultério. Alinhava as razões que a fragilizaram – queria resguardar o patrimônio dos filhos. Relatava, também, a forma como foi enganada por Antonio Pedro e a batalha judicial para reaver parte dos bens para os seus filhos. Porém o que surpreendia eram as causas que a fizeram abandonar o lar e iniciaram aquele desfecho tão triste, na condição de mendicância.
Referência:
[1] Kardec, Allan. O Céu e o Inferno e a Justiça Divina segundo o Espiritismo. 2ª.ed. 1ª i, 2013. FEB. Brasília.p.89
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