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Siá Tonha cap. XXVIII - Expiação



“A expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais, que são a consequência da falta cometida, seja desde a vida presente, seja, após a morte, na vida espiritual, seja numa nova existência corpórea, até que os traços da falta sejam apagados. “

O Céu e o Inferno. Primeira Parte - Doutrina - Capítulo VII - As penas futuras segundo o Espiritismo Código penal da vida futura. 17º cap.


A noite estava gelada, o vento soprava produzindo sons que pareciam longos gemidos. As poucas pessoas que ficaram para velar Dona Helga, aconchegavam-se em torno das lareiras abastecidas com lenha pelos criados. Viriata e as demais empregadas da casa se revezavam servindo chás, cafés e outras iguarias para confortar a vigília.

A mãe de Helga estava como que petrificada junto ao esquife da filha. Não chorava, não lamentava. Frau Erna era uma máscara de dor impassível, contemplando o corpo inerte da filha, como se não quisesse acreditar no que via. O pai não aparecera até aquele momento, o que causava surpresa em uns, indignação em outros, embora ninguém soubesse o que se passara na véspera e que podia ser a causa do gesto extremo da morta.

- Viriata, venha cá!

- A senhora precisa de alguma coisa Dona Ieda?

- Preciso – Ieda foi conduzindo a criada para uma das salas vazias do casarão.

- Desde quando o Anacleto está aqui? Onde ele mora? Fala criatura!

- Ele chegou no dia em que prenderam o patrão. Ajudou a menina Luisa que caiu lá na rua. Entrou aqui, mas só eu o conheci. Quando ele saiu eu fui atrás.

- O que ele quer, Viriata? Dinheiro?

- Acho que não Dona Ieda, só me disse que queria pedir perdão aos filhos.

- Depois de tanto tempo?

- Eu acho que houve alguma coisa que ...

- Que... que coisa? O que você sabe Viriata?

- Nada, não senhora. Eu não sei nada.

- Eu preciso falar com esse homem. Você sabe onde eu o encontro?

- Bem, eu tinha emprestado a minha casinha para ele ficar enquanto estivesse aqui, mas não sei se ele voltou para lá.

Quando amanheceu, Ieda que cochilara um pouco, reclinada no sofá, ergueu-se, tomou um café e informou-se com Viriata sobre o local onde poderia encontrar o antigo vizinho.

Anacleto voltara da Rodoviária, pois o primeiro ônibus para a capital saía pela manhã. Passara uma noite de “cão”. A imagem de Helga, enforcada, aparecia-lhe acusando-o, chamando-o de assassino. Quando era vencido pelo sono, tinha pesadelos, via Antonio Pedro chutando-o nas escadas do casarão, rindo e escarnecendo dele, um homem com uma faca ensanguentada investia contra ele, acordava banhado de suor e com o corpo doendo.

Quando levantou-se e se preparou para partir, lembrou que precisava entregar as chaves para Viriata, mas não queria voltar ao casarão. Saiu para ver se algum vizinho as recebia para repassar a sua benfeitora.

Siá Tonha, após a ronda no velório de Helga e, novamente, nas casas dos operários mortos, buscava intuir o seu protegido para que retornasse, sem mais delongas, uma vez que ali não havia o quê fazer.

Anacleto estava resignado. Nada saíra como programara, mas alguma coisa começava a se transformar em seu coração. Pensava em Antonio Pedro, preso, longe de casa, a esposa morta, sem que ele pudesse nem se despedir, e experimentava até um pouco de compaixão, e depois que Táta lhe dissera que talvez ele estivesse a responder por atos praticados pelo seu filho Julinho... e se fosse verdade? Era alguém determinado a proteger o seu filho, como ele nunca o fizera.

Afastou esse pensamento, porque também era demais para ele surpreender tanta nobreza naquele miserável.

Abriu a porta para sair, quando o carro parou e Ieda desceu, sem nem esperar que o motorista abrisse a porta, dirigindo-se a ele.

- Preciso falar com você.

- Estou indo embora. Esqueça que me viu, por caridade!

- Você pode ir, eu posso esquecer, mas não antes de esclarecermos algumas questões. Talvez eu esteja me intrometendo em coisas que não me digam respeito, mas eu acompanhei a minha amiga Lucélia em todos os momentos depois que você deixou aquela carta estranha e sumiu.

-Eu não escrevi nenhuma carta Ieda, Viriata também veio com essa história, eu não deixei carta para ninguém, juro para você. Eu decidi ir embora, quando o Dr. Calistro me disse que não ia fazer nada para eu reaver os meus bens e os meus amigos, a própria Lucélia, me voltaram as costas. Mas eu não quero mais me queixar. Eu mereci tudo o que fizeram comigo, ou o que eu mesmo fiz, nem sei mais. Mas carta eu não escrevi.

-Eu vi a carta, Anacleto, era a sua caligrafia, a sua assinatura, ela me mostrou. Você não sabe como a mãe dos seus filhos lutou para reaver parte dos seus bens para eles. Ela se aproximou do Antonio Pedro por desespero, ele prometeu que conseguiria passar a administração do patrimônio e as contas bancárias para ela, pois você a cada dia gastava mais e mais. Mas ele a enganou. Não queria ajudá-la, mas se aproveitar da fragilidade do casamento de vocês para se dar bem. Quando ela viu que estava tudo em nome dele, ela iniciou uma guerra contra ele. Nesse ínterim você sumiu e ela prosseguiu, sozinha! Na verdade, ele não tinha interesse nela, mas no patrimônio de vocês.

Anacleto ia ficando cada vez mais surpreso com o que ouvia de Ieda. E porque Lucélia estava mendigando nas ruas? Se ela havia retomado parte dos bens para os filhos, porque não ficara ali? Tinha se apaixonado por alguém, era bem possível, afinal era uma mulher que ele retirara de um prostíbulo, pensava, buscando justificar os seus velhos preconceitos.

- O que eu não entendo Anacleto, continuou Ieda, é o porquê da fuga, pois foi uma fuga de Lucélia. Ela estava prestes a exigir a saída de Antonio Pedro de casa, eles não conviviam mais há muito tempo, acho que desde que você os surpreendeu e ela descobriu a farsa, o relacionamento acabou. Ela havia preparado tudo com o Dr. Calistro, para removê-lo da administração dos bens, da fazenda e do casarão. Eu lembro que ela foi para a fazenda com os filhos para poupá-los de mais um trauma, com a saída dele, pois embora as brigas entre os dois, ele era bom para as crianças e elas tinham-lhe apego. Ela estava em paz, naquele dia, disse-me que uma nova era começaria para ela e os filhos depois de tantas intempéries emocionais.

- Mas, naquela noite ela bateu em minha porta, estava muito abalada. Não quis me contar nada. Entregou-me uma carta selada e pediu-me apenas que eu a guardasse muito bem, sem revelar a ninguém, e se um dia, Antonio Pedro desamparasse ou tirasse qualquer dos bens dos filhos dela, eu entregasse aquela missiva a eles se já fossem adultos, ou se ainda fossem crianças eu mesma abrisse e saberia o que fazer. Abraçou-me, por um bom tempo, e foi embora, desaparecendo nas sombras da noite. Fiquei ali com aquele envelope nas mãos, vendo a minha amiga ir embora e nunca mais a vi.

- No dia seguinte, Antonio Pedro chegou com os meninos da fazenda e eu fui até lá. Todos diziam que Lucélia havia partido com outro homem, e que havia deixado os filhos, para não envergonhá-los, com mais um adultério, preferindo ir embora. Nunca acreditei nisso,

- Você nunca leu a carta?

- Não. Ela foi bem explícita quanto às circunstâncias que me autorizavam a isso e elas nunca se verificaram. Antonio Pedro educou os meninos como seus filhos, com muito carinho e com todo o conforto.

- Não sei o que lhe dizer Ieda!

Tão logo Ieda saiu, Viriata foi para o seu quartinho na ala dos empregados e acendeu uma vela. Pegou o terço de contas gastas e começou a rezar as ave-marias e padre nossos, benzendo-se e pedindo perdão, várias vezes. Sentia-se uma covarde. Ela sabia de tudo, vira a vida de Anacleto, e principalmente de Lucélia, serem destruídas, mas calara, com medo. Sentia-se impotente. O que poderia ela contra aquele homem poderoso, que comprava tudo e todos?

Naquela manhã, quando esperava Anacleto chegar, antes de descobrirem a morta, encorajara-se e decidira dizer tudo o que sabia. Estava velha, não ia levar para o túmulo esse segredo. Mas aí, aconteceu tudo aquilo, Anacleto sumira de novo e quando Ieda a interrogava, a voz sumira na garganta, voltando aquele abominável medo.

Tomara que ele ainda voltasse. Assim que saísse o enterro e as coisas se acalmassem ia procurá-lo para dizer o que sabia, precisava fazer isso.

Viriata lutava com a consciência de culpa, que por anos a atormentava com aquele segredo, que ninguém sabia que ela guardava. A prece foi asserenando o seu coração, porque afinal naquele momento era de todo inútil o seu sentimento de culpa, quando o que as pessoas necessitavam era de amparo e orações diante do triste insucesso que acometera a família.

Ieda e Anacleto se despediram, ambos mediam as palavras, pois não havia confiança estabelecida entre eles. Ele não revelara que encontrara com Lucélia e ela também nada mais confidenciara.

Recebeu a chave da casinha de Viriata, deixou o antigo amigo e vizinho na rodoviária e voltou para a mansão onde continuavam as exéquias fúnebres de Dona Helga.

Anacleto acomodou-se nos últimos bancos do ônibus e olhava a vastidão das campinas que se perdiam de vista, e por vezes sumiam por detrás da cortina de lágrimas que rolavam com intensidade. Pensava nos seus erros, nas escolhas tão desastrosas, nos sofrimentos que espalhara em profusão.

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