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Siá Tonha cap. XXXI - Reparação




Só por meio do bem se repara o mal, e a reparação nenhum mérito apresenta se não atinge o homem nem no seu orgulho, nem nos seus interesses materiais.[1]


O salão do centro espírita Allan Kardec estava apinhado de gente.

Com muito custo Anacleto encontrou um cantinho para sentar, mas quando estava se acomodando, adentrou uma senhora de cabelos brancos, caminhando com dificuldade. Ele apressou-se a levantar e ceder-lhe o lugar.

Roberto observava a gentileza do frequentador, à distância, e foi até ele.

- Lembra-se de mim?

Claro que ele se lembrava do homem que cuidara dele no abrigo e que lhe apresentara as lições tão consoladoras do Espiritismo, quando ofertou-lhe aquele evangelho. Nas muitas vezes em que ia até o centro espírita o avistava, porém não tinha coragem de se aproximar.

Roberto também o observava e aguardava, pacientemente, que ele se dispusesse a falar com ele. Sabia que, por vezes, as pessoas sentem desconforto em serem recordadas quando dos seus momentos de fragilidade. Mas, naquele dia, um influxo vigoroso moveu-lhe ao encontro do frequentador. Siá Tonha envolvendo o trabalhador espírita impulsionou-o para conversar com Anacleto, a fim de que o socorro se fizesse e mais uma vez a lei divina propiciasse a chance de reparação ao réprobo.

Como se estivessem sob uma combinação anterior, Roberto segurou com afabilidade o braço de Anacleto que se deixou conduzir para uma sala contígua ao salão onde lia-se “ Orientação e Receituário”.[2]

Após uma prece e a leitura de O evangelho segundo o espiritismo, que ao ser aberto, trouxe a página que foi lida enquanto Anacleto deixava as lágrimas escorrerem pela face, empapando a camisa.



Amai-vos uns aos outros e sereis felizes. Tomai sobretudo a peito amar os que vos inspiram indiferença, ódio, ou desprezo. O Cristo, que deveis considerar modelo, deu-vos o exemplo desse devotamento. Missionário do amor, ele amou até dar o sangue e a vida por amor. Penoso vos é o sacrifício de amardes os que vos ultrajam e perseguem; mas, precisamente, esse sacrifício é que vos torna superiores a eles. Se os odiásseis, como vos odeiam, não valeríeis mais do que eles. Amá-los é a hóstia imácula que ofereceis a Deus na ara dos vossos corações, hóstia de agradável aroma e cujo perfume lhe sobe até o seio. Se bem a lei de amor mande que cada um ame indistintamente a todos os seus irmãos, ela não couraça o coração contra os maus procederes; esta é, ao contrário, a prova mais angustiosa, e eu o sei bem, porquanto, durante a minha última existência terrena, experimentei essa tortura. Mas Deus lá está e pune nesta vida e na outra os que violam a lei de amor. Não esqueçais, meus queridos filhos, que o amor aproxima de Deus a criatura e o ódio a distância dele. – Fénelon. (Bordéus, 1861.)[3]



Roberto estendeu-lhe um copo com água e aguardou, em prece, percebendo o trabalho espiritual que se realizava ali, entendendo que aquele homem fazia uma catarse profunda, remexendo tumorações, que estavam sendo drenadas com muito sofrimento.

- O Senhor leu aí tudo o que me aflige. Eu odeio, odeio muito, mas também tenho remorso de muita coisa errada que fiz.

- Se lhe fizer bem contar algo que sobrecarrega o seu coração, estou aqui para ouvi-lo, em sigilo, somente nós dois saberemos, e eu só poderei usar o que aqui for dito para ajudá-lo, quando e como vocês quiser.


................................................................................


Na manhã seguinte o militar adentrou o Quartel General. Era conhecido e estimado por todos, superiores e subalternos; aqueles respeitavam-no pela modelar postura na caserna e fora dela; estes, pelas maneiras justas e bondosas no trato.

Vamos encontrá-lo no gabinete do comando. Sua voz era acatada e tudo o quando ponderava era examinado com grande atenção. O General Comandante olhava o nome escrito na folha que Roberto lhe estendia.

- Tens certeza?

- Sim, não viria aqui encarecer a sua ajuda, antes de ponderar e refletir longamente sobre isto. Conversei com outros oficiais que o conhecem na localidade onde mora.

Após o diálogo significativo, trouxeram a documentação do preso Antonio Pedro. Roberto examinou-a e comprovou a fragilidade da acusação. Anacleto tinha razão, aquele homem era inocente. Nada havia nos autos que justificassem a prisão. Os ditos documentos apreendidos eram panfletos comuns, que poderiam ter sido plantados deliberadamente, como era usual à época, quando queriam incriminar alguém.

- Vou solicitar a soltura do homem, Michelena. Empenharei a minha e a sua palavra de que não estamos soltando mais um destes comunistas, para se opor ao governo. Não posso negar-lhe um pedido.

- Senhor! Quero que olhe muito bem os autos. Se encontrar qualquer indício que desautorize a soltura desse homem, por favor, indefira o meu pleito.

O comandante pigarreou, contornou a mesa com as mãos às costas e sacudiu a cabeça em sinal de assentimento.

- Vou expedir o rádio para a capital. Aviso-lhe! Quer ver o preso?

- Não, apenas um pedido. Quando e se ele for solto, peça ao soldado que o conduzir para a liberdade que lhe entregue esse nome e diga-lhe que deve a ele a sua liberdade.

Escreveu em uma folha que tomou de cima da mesa do General o nome de Anacleto, que anotara no atendimento feito no centro.

Roberto estava em paz. Recolhera de Anacleto a história tão sofrida e indagara ao assistido o que o deixaria em paz, e ele dissera: já fizera tanto mal aos filhos à esposa, que a única dose de serenidade que poderia fruir, mesmo com todo o ressentimento, a mágoa e o ódio que sentira pelo primo que o traíra e que reduzira a sua esposa à miséria era saber que essa sucessão de injustiças não iria continuar.

A possibilidade de Antonio Pedro estar em silêncio, suportando acusações que talvez devessem ser endereçadas ao seu filho, Julinho, era algo que o supliciava muito, pois dava ao inimigo uma nobreza que ele não queria admitir.

Que Antonio fosse solto, que voltasse a cuidar dos seus filhos como sempre o fizera. Segundo Viriata lhe informara, ele era um bom pai para os meninos. A morte trágica da esposa Helga já era um castigo suficiente a seu juízo.

Quando Roberto aventou a possibilidade de ajudar na revogação da prisão do desafeto, ele concordou.

Na manhã seguinte o ajudante de ordens do General trouxe a cópia do radiograma. Antonio Pedro seria posto em liberdade, mas deveria ser exilado de pronto. Eram as condições impostas. Sairia pelo Sul e seria entregue ao Governo uruguaio, e de lá poderia ir para onde lhe aprouvesse, mas não poderia voltar ao Brasil.

As bênçãos do alto renovavam àquela alma a oportunidade de rever as suas atitudes. Agora era banido da sua terra, despojado da gestão de todos os bens pelos quais cometera tantas atrocidades, para que os últimos dias de sua vida lhe ensejassem salutares e oportunas reflexões.

Enviaram uma comunicação à família dando a notícia de que o preso estava em liberdade e seria conduzido de imediato ao Uruguai. O discreto comboio partiu no meio da noite, cruzando as ruas desertas da capital. Antonio Pedro, encolhido no banco de trás da viatura, parecia uma sombra do homem arrogante que fora. Os meses na prisão, os maus tratos, os interrogatórios haviam acirrado a sua deficiência respiratória. A tosse contínua que piorava pela umidade e pelo frio da cela trazia febres frequentes. Deram-lhe as roupas que trouxera e pela primeira vez possibilitaram-lhe tomar um banho morno para se preparar para a viagem. Chamaram o médico que prescreveu algumas medicações. Viajou com um enfermeiro do exército que foi tratando-o pelo caminho a fim de garantir que não morreria antes de ser entregue aos cuidados do país vizinho.

A viagem foi longa e tiveram algumas paradas em quartéis pelo caminho, onde descansavam, faziam as refeições, chegando no marco fronteiriço ao amanhecer do segundo dia.

O cônsul do Brasil no Uruguai veio recebê-lo com dois policiais civis do Departamento. Antonio Pedro estava fraco, teve que ser amparado para descer e se locomover até o outro veículo. O Oficial que chefiava a operação de extradição leu, para todos, o documento que declarava anulada a prisão e a transformava em exílio. O pobre homem ouvia aquela sentença e na sua mente vieram as cenas da expulsão de Anacleto da casa da família e depois o desespero de Lucélia implorando a ele para não ir embora, para não ser entregue à polícia. Começou a entender, com a dor pungente que sentia, um pouco do sofrimento que infligira àquelas criaturas.

Antes de retornar à viatura, o oficial aproximou-se do exilado, já acomodado no carro do consulado e disse-lhe:

- Pediram que eu entregasse ao Senhor, essa anotação. Disseram-me que é o nome do responsável pela sua liberdade.




REFERÊNCIAS:

[1] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos. FEB. Perg. 1000 [2] Atividade muito comum nos centros espíritas, àquele tempo – década de 1940-50 – e ainda hoje existe em alguns núcleos em adaptação ao tipo de atendimento espiritual, desenvolvido com base no estudo da Doutrina Espírita. [3] Cap. O Evangelho segundo o Espiritismo > Capítulo XII – Amai os vossos inimigos. Instruções dos Espíritos. O ódio, item 10.

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