Siá Tonha cap. XXXII - Resgate
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Em que se baseia a duração dos sofrimentos do culpado?
“No tempo necessário a que se melhore. Sendo o estado de sofrimento ou de felicidade proporcional ao grau de purificação do Espírito, a duração e a natureza de seus sofrimentos dependem do tempo que ele gaste em melhorar-se. À medida que progride e que os sentimentos se lhe depuram, seus sofrimentos diminuem e mudam de natureza.”
SÃO LUÍS.[1]
Anacleto recebia pessoas à porta do centro espírita. Quem observava aquele homem de cabelos brancos, acolhendo a todos com um sorriso tranquilo na face, tendo sempre uma palavra reconfortante e um gesto amigo para diminuir as muitas dores que ali aportavam, não reconheceria o mendigo angustiado e sofrido, que Alírio encontrara sob a ponte há mais de duas décadas.
A Doutrina Espírita fizera nascer um novo homem das cinzas de um passado tortuoso. Siá Tonha tornara-se a companhia espiritual que, durante os atendimentos aos moradores das ruas, desenvolvera nele a mediunidade de cura, auxiliando-o a direcionar as suas energias vitais para beneficiar os infelizes. Frequentando, assíduamente, o centro espírita foi sendo encaminhado para a aplicação de passes, cativando a todos com a sua dedicação e entrega à tarefa. O coração foi curando-se no trabalho prestado ao semelhante. As feridas, sob o bálsamo da caridade, foram se fechando. Conseguia pensar em todos, todos mesmo, sem mágoas e ressentimentos. Orava pedindo que a paz que experimentava pudesse um dia ser sentida pelos que, como ele, infelicitaram o próximo.
Roberto perguntava-lhe, por vezes, se não gostaria de ir ter com os seus filhos, mas ele sempre recusava. Não por mágoa, mas porque não queria reabrir velhas feridas e despertar sentimentos que deveriam ficar esquecidos para dar a eles novas chances de crescimento espiritual.
Na condição de aplicador de passes foi convidado para integrar a equipe de uma das reuniões mediúnicas, onde, um dia, a misericórdia divina promoveu o reencontro com Antonio Pedro e Lucélia.
Foi o próprio adversário do passado que lhe revelou ter sabido da sua participação para livrá-lo da prisão injusta. Anacleto nem sabia que Roberto havia informado isto ao primo, quando do ocorrido. Antonio Pedro chorou muito, pediu perdão e confessou que o assassinato imputado à Lucélia foi uma farsa. Em verdade, o homem não estava morto. Foi um ator pago para compor a cena. Quando a mulher foi embora eles desmontaram o cenário entre gargalhadas ruidosas. Na mesma reunião também trouxeram Lucélia, em estado de exaustão, perseguida e acicatada por entidades cruéis, bradando por justiça. Antonio Pedro, em melhor situação, retornou algumas vezes e dispôs-se a se preparar para retornar à Terra a fim de receber como filhas, Lucélia e Helga, sua esposa suicida.
Lucélia ainda comparecia, nos encontros mediúnicos, um pouco menos revoltada, mas ainda tinha um largo caminho de retificação, no qual as rogativas e o trabalho de Anacleto contribuíam em muito.
Alírio, inspirado por Siá Tonha, fundara um abrigo, onde acolhia os desvalidos da rua. Mesmo assim, ele e o velho amigo Anacleto mantinham as rondas domingueiras, como naquela manhã.
- Meu amigo, Anacleto! Às vezes as pernas não obedecem mais. Eu até queria ir mais longe, hoje, mas estou cansado.
- Pois então, meu amigo, os janeiros passam depressa. Acho que nós precisávamos de força nova nessa atividade.
- Mas quem vai querer? Esses médicos de hoje só querem dinheiro, carro novo, viagem para a Europa...
- Sabe doutor, eu acho que tem alguém que vai querer. É uma alma boa. Vai lá no Centro... Posso convidar?
- Se você acha que dá, convide – tenho minhas dúvidas!
- Meu amigo, nós temos que ter fé. Deus não desampara as criaturas, quantas vezes dizemos isto aos nossos amigos da rua. O Pai de todos nós cuida das suas almas em provação. E nós que temos que auxiliar nessa tarefa, precisamos nutrir a fé de que ele nos ampara e tem alguém para continuar cuidando dos necessitados quando não pudermos mais fazer isto.
Anacleto, com a sua linguagem simples, tinha o condão de balsamizar o coração de Alírio que trazia amarguras inconfessadas.
Na manhã chuvosa a artrite do Dr. Alírio amanhecera entorpecendo as articulações. Com muito esforço conseguiu sair da cama e fazer um café. Nem pode ajudar os voluntários no atendimento aos abrigados. Espiou pela janela do seu quartinho e pensou: - Anacleto deve estar quase chegando. Hoje terá que ir sozinho.
Sentiu uma dor fininha percorrendo-lhe o peito. Aquele trabalho aos domingos era a sua razão maior de viver. Sentia-se revigorado, leve, feliz, quando andava a socorrer os seus filhos do calvário. Lera Paulo e Estevão e gostava da expressão. Também tinha filhos do calvário. Embora não tenha se tornado um trabalhador espírita como o Anacleto, era um leitor voraz das obras espíritas. Contudo estava ficando cada vez mais difícil, principalmente no inverno. Mas consolava-se. As crises vinham e iam embora.
Anacleto chegou e quando não viu o amigo esperando-o na entrada do abrigo já percebeu que a artrite entrara em campo.
- Velho! Chamou, brincando com o amigo. Enferrujado, hoje?
- Bastante. Não trombeteie, pois você vai no mesmo caminho, respondeu o médico recostado na cadeira perto da cama.
- Trouxe alguém para falar contigo.
- Entre Doutora!
- Pelo vão da porta, assomou uma cabeça com um cabelo escuro, atado em coque. A fronte morena ressaltou com o sorriso que deixou à mostra uma fileira de dentes muito alvos.
- Entre, Corina, venha conhecer a pessoa de que lhe falei. Ela é médica, também, Doutor. Anacleto nunca conseguiu, embora a intimidade dos longos anos de convívio, chamar Alírio pelo nome.
- Você é médica? Tão jovem!
- Sim, formei-me há dois anos.
- E você veio mesmo para realizar esse trabalho que fazemos?
- Na verdade eu já faço.
- Já? Alírio estava surpreso. Era preconceituoso, e embora o grande coração que possuía, tinha também uma descrença crônica na humanidade. Em especial na sua classe.
- Sim. Não nas ruas, mas eu atendo as populações dos quilombos.
Alírio teve um estremecimento. O coração começou a bater descompassadamente. Respirou mal e se afogou. O aposento estava em penumbra e a sua visão já não ajudava muito. Com as mãos trêmulas buscou os óculos e tentou se erguer, mas as pernas não obedeciam.
- Anacleto, acenda, acenda a luz!
O amigo não entendia a razão da excitação do velho médico e nem Corina que se apressou em socorrê-lo.
- Quando a médica curvou-se sobre o paciente e o quarto de iluminou, Alírio ficou a poucos centímetros daquele rosto e somente exclamou:
- Não é possível! Não!
Foi ficando lívido, a respiração se tornou ofegante e o choque sofrido o colocou inconsciente.
Referência: [1] Kardec, Allan. O livro dos Espíritos. 93ª ed. FEB. Brasília. P. 1004
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