Siá Tonha cap. XXXIII
Alírio abriu os olhos e, imediatamente, deu-se conta de que estava em um dos quartos do hospital, onde tantas vezes visitara os seus pacientes. O que afinal tinha acontecido?
Lembrava daquele rosto próximo ao seu e nada mais.
Agitou-se no leito chamando a atenção de Anacleto que velava pelo amigo, desde cedo, quando desacordado deu entrada no hospital levado por ele e por Corina. O médico plantonista atestara um choque emocional que provocara uma síncope, com elevação da pressão arterial. O medicamento administrado provocara o sono para reparar as energias orgânicas e psíquicas do paciente.
Siá Tonha estava a postos, também amparando os seus amigos naquele momento doloroso e revelador, ao mesmo tempo, para o médico.
Ajeitando os travesseiros, Anacleto foi auxiliando o amigo a se recostar. Alírio buscava, aflito a presença da moça que lhe causara tamanho impacto.
- O Doutor procura pela Corina? Ela está de plantão agora à noite em outro hospital. Ficou o dia todo aqui.
- Corina... Corina... o olhar de Alírio fitava o nada, ou o passado...
- Anacleto deu-se conta de que, em todos aqueles anos de convívio, pouco sabia do amigo. O seu silêncio sobre o passado era total. Sabia apenas que era um lobo solitário como ele costumava se intitular. Não tinha família, pois era único filho e perdera os pais muito cedo, quando ainda estava iniciando os estudos na universidade.
- Anacleto sentou-se ao lado do leito e ficou em silêncio. Sabia quando um coração necessitava da cumplicidade de alguém sem perguntas.
Ficaram assim por quase uma hora, quando o amigo começou a falar.
- Essa moça me trouxe recordações muito doídas. Muito, mesmo.
- Parece que você estava vendo um fantasma.
- Ela é por demais parecida com alguém que eu conheci.
E pela primeira vez, o velho e bondoso médico falou de si para o amigo.
- Eu a conheci na Universidade. Ela era linda e inteligente. Seu jeito alegre, extrovertido me cativara, pois éramos tão diferentes. Eu sempre fui tímido, guardava um ar tristonho, era comedido no rir e no falar. A sua vivacidade era, para mim, a própria vida que me envolvia. Nosso relacionamento perdurou durante três anos. Fizemos planos e aguardávamos impacientes, a formatura para enfim nos casarmos e formarmos a nossa família. Eu não conhecia a família dela. Apenas sabia que ela era filha de quilombolas e que tivera uma árdua luta para estudar e ingressar na faculdade de medicina. Algumas vezes ela desaparecia da república onde morava e dizia ir visitar a família. Sempre se recusou a que eu a acompanhasse e me aproximasse deles, porque eu era de cor branca e a comunidade da qual ela fazia parte era segregacionista, não gostava da proximidade de pessoas brancas. Eu sofria com isto, porque para mim não fazia o menor sentido. O meu amor era maior que quaisquer diferenças. Aos poucos ela foi me convencendo de que quando nos casássemos as coisas ficariam mais fáceis para a minha aceitação.
Neste ponto da conversa as lágrimas começaram a escorrer copiosamente pelo rosto de Alírio.
- Esse dia nunca chegou. Lembro como se fosse hoje, o dia em que ela ficara de retornar da visita aos pais e não apareceu na aula. Também não retornou mais à república. Eu quase enlouqueci. Interrompi os meus estudos naquele ano e passei a pesquisar sobre todas as comunidades quilombolas do nosso estado, da região e fui, uma a uma, procurando por Luana, esse era o nome dela. Ela pareceu ter sido tragada pela terra. Ninguém a conhecia. Na matricula da Universidade mencionava apenas o endereço da República. Os nomes dos pais não constavam em registros cartorários. Eu não encontrei nada. Foram meses de busca. Até na polícia eu fui, registrei queixa do desaparecimento, investigaram, mas nada foi encontrado.
- Um dia, quando todas as esperanças para mim estavam se extinguindo, encontrei na caixa do correio uma carta que guardo até hoje. Era dela. Pedia perdão. Disse que não tinha coragem de abandonar o seu povo. Que seus pais a obrigaram a escolher entre o mundo dos brancos e a sua gente. Ela desistira de mim e do sonho de ser médica. Eu não entendi, nunca pude entender como a cor de pele diferente, pode ser um empecilho para a felicidade.
- Foi um tempo em que pensei muitas vezes em morrer. O que me salvou foi o fato de que já estávamos intensificando as aulas práticas, os plantões no hospital e o contato com a dor dos pacientes foi, de certa forma, anestesiando a minha. Nunca mais me aproximei afetivamente de alguém. Isso faz mais de 30 anos. Foi como se algo tivesse se quebrado dentro de mim. O que eu sentia era um misto de decepção, ódio, descrença.
- Quando vi essa moça, tão parecida, tudo aquilo com que lutei tanto para esquecer surgiu com uma força avassaladora.
- Desculpe, meu amigo! Eu não poderia imaginar que fosse te causar tanto mal.
- Não se culpe, companheiro. Talvez fosse o tempo mesmo de extirpar essa tumoração que tem adoecido a minha emoção há tanto tempo.
O doente estava exausto. Ainda sob o efeito da medicação foi cerrando os olhos e voltou a dormir.
O sol espiava pela janela da enfermaria. Corina, após o plantão resolvera passar para ver a evolução clínica do novo amigo.
Percebera que a sua presença tinha causado a sincope naquele homem, mas não conseguia compreender a causa. O olhar dele, ao contemplá-la antes de perder os sentidos, não saía da sua mente.
Sentou-se a beira da cama e aguardou que ele acordasse.
- Você não dormiu, menina? Alírio me disse que você estava de plantão.
- Passei para saber do senhor, primeiro. Depois vou dormir. Sorriu e aquele sorriso novamente trouxe à mente do enfermo a imagem de Luana.
- Como está se sentindo?
- Desculpe o transtorno, moça. Bem no dia em que você chega para nos ajudar eu já apronto uma confusão destas. Por favor, me perdoe.
- Tem certeza de que eu não tenho nada a ver com o seu “mal-estar”. Ela era direta.
Ele ainda tentou desconversar.
- Você? Nem nos conhecemos, porque você...
- Doutor, nós conhecemos o ser humano. Vamos trabalhar juntos em uma tarefa muito bela e difícil. Eu lhe causei um profundo estresse por alguma coisa, consciente ou não. É melhor sermos sinceros um com o outro, desde já.
Alírio ficou sem reação diante de tamanha assertividade. Aquela moça falava de coisas difíceis com uma naturalidade desconcertante, como se estivesse fazendo uma cirurgia, com uma precisão espantosa.
- Tudo bem. O senhor não quer fala eu respeito. Tem coisas que são difíceis mesmo. Mas admita isso, não tente me enganar, doutor, disse segurando a mão trêmula, sem perder o sorriso cristalino que bailava no rosto.
- Talvez, seja melhor eu falar mesmo e você já encaminha um pedido para internação psiquiátrica, disse ele, tentando aliviar a tensão emocional com um sorriso tímido.
- Corina, você é parecida com uma pessoa que eu amei muito no passado. Mas você é como se fosse uma sósia dela.
- Mesmo? Foi só por isso? Ufa! Ainda bem!
- Mas é uma semelhança incrível, insistiu Anacleto.
- Corina, não conhecera a mãe. Mas sabia que era muito parecida com ela. Crescera com os avós, na comunidade quilombola e nunca vira uma foto da sua genitora. Pouco falavam nela, como se fosse um assunto proibido.
Siá Tonha acompanhava o singular diálogo e inspirava Corina para um reencontro necessário.
- Como ela se chama?
Alírio vacilou - há tanto tempo não pronunciava aquele nome - falara ontem para o amigo e como se estivesse retirando uma navalha da garganta, disse;
- Luana!
Corina sentiu que o sangue afluiu para a face, e que o seu coração acelerou. Ficou séria. Sentiu um arrepio, como se um presságio, de repente, se anunciasse.
Sempre ficara intrigada com o passado de sua mãe e o dela própria. Quando o avô morreu, quase centenário, após um acidente vascular cerebral, recobrou a lucidez no leito de morte e pediu-lhe perdão. Seus olhos se fecharam antes que ela pudesse entender o que deveria perdoar naquele avô que tinha sido o único pai que ela conhecera e que fizera tudo por ela. A avó partira antes. Era uma mulher enérgica, pouco afeita a expansões afetivas, mas o avô era uma alma doce e amorosa. E ele lhe pedira perdão. Por que?
Alírio sentiu a mudança emocional de Corina.
Percebendo-se observada ela reagiu e, como sempre, foi direto ao ponto, desse no que desse
- Luana? Esse era o nome de minha mãe
O silêncio que se estabeleceu ali tinha significados que são impossíveis de transcrever.
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