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Siá Tonha cap. XXVI - Culpa e Libertação IV




Deveis, àqueles de quem falo, o socorro das vossas preces: é a verdadeira caridade. Não vos cabe dizer de um criminoso: “É um miserável; deve-se expurgar da sua presença a Terra; muito branda é, para um ser de tal espécie, a morte que lhe infligem.” Não, não é assim que vos compete falar. Observai o vosso modelo: Jesus. Que diria ele se visse junto de si um desses desgraçados? Lamentá-lo-ia; considerá-lo-ia um doente bem digno de piedade; estender-lhe-ia a mão. Em realidade, não podeis fazer o mesmo; mas, pelo menos, podeis orar por ele, assistir-lhe o Espírito durante o tempo que ainda haja de passar na Terra. Pode ele ser tocado de arrependimento, se orardes com fé. É tanto vosso próximo, como o melhor dos homens; sua alma, transviada e revoltada, foi criada, como a vossa, para se aperfeiçoar; ajudai-o, pois, a sair do lameiro e orai por ele. – Isabel de França. (“Havre, 1862”.)”



A leitura confortou-o um pouco, mas continuava sem saber o que fazer, não tinha endereço na cidade, como deixaria o endereço para que Maria Lúcia ou Julinho procurassem por ele.

- Seu Anacleto! É o senhor não é?

Quem o reconhecera? Não. Devia estar ouvindo coisas. Estava exausto, extenuado.

Mas aquela voz insistia e lhe era bem familiar.

Voltou-se e seus olhos se iluminaram, quando se depararam com a mulher alta e magra, com os cabelos brancos presos em tranças, que o contemplava com os olhos úmidos de emoção.

- Táta! És tu?

- Sim, meu menino. Eu quase não acreditei quando lhe vi entrando no solar com a menina Maria Lúcia no colo. Estou com a visão meio turva, mas quando o senhor saiu eu vim atrás e fiquei olhando, tomando coragem.

Viriata, a Táta, fora a babá de Anacleto, acompanhara toda a sua história. Era a única criatura depois da mãe a quem ele devotara algum respeito, fazia confidências e eram dela os poucos conselhos que ouvia. Ela continuou cuidando dos seus filhos. Estava velhinha, mas permanecia a serviço dos amos, porque também não tinha ninguém da família, nem para onde ir.

- Eu nunca acreditei nas histórias que me contaram. Tinha pra mim que um dia o senhor voltava.

A anciã segurava as mãos de Anacleto e olhava-o demoradamente.

- O que te contaram Táta?

- Primeiro foi aquele alvoroço, o senhor perdeu tudo, tentou recuperar. Um dia o Seu Antonio Pedro chegou e disse que o senhor tinha ido embora para não prejudicar mais a sua família. Leu uma carta para a Dona Lucélia onde o Senhor desejava que ela e os seus filhos fossem felizes e lhe esquecessem.

- Carta? Mas eu não escrevi nenhuma carta! Fui embora isto sim, mas fui porque estava magoado e triste demais, desiludido, louco.

- Táta, eu fui enxotado na minha casa. Ele me tirou tudo.

- Dona Lucélia chorou muito. Ela não queria o seu mal.

- Ela me traiu dentro da minha casa, deixou que um empregado tomasse conta dos nossos bens.

- Seu Anacleto, desculpe! Mas o Senhor deixou a sua mulher muito só. Ela tinha muito medo de que o senhor ficasse sem nada e não tivesse como criar os meninos. O que ela queria era resguardar o patrimônio deles.

- Passando para o nome do amante?

- Ela não fez isso!

- Eu vi os documentos Táta!

- Ela conseguiu anular tudo seu Anacleto, menos as dívidas que o senhor tinha.

- Foram anos de briga nesta casa, de acusações, até que um dia ela juntou as suas coisas e me pediu para cuidar dos meninos, porque tinha que ir embora. Nunca entendi muito bem o que aconteceu, nem fiquei sabendo a causa da partida repentina.

Mas o seu Antonio Pedro foi um bom pai para eles. Eles o querem bem. Sofrem ainda pela ausência da mãe que segundo o patrão foi embora com outro homem, principalmente o Julinho, nunca se conformou pois era muito apegado à mãe.

Seu Antonio Pedro se casou com uma moça de origem alemã, filha de um dos empresários daqui. Uma pessoa muito doente, mas uma boa pessoa. Carinhosa com os seus filhos também, já que ela mesma nunca pode ter filhos. Foi um casamento por interesse, a gente nota. A moça tem uma tristeza profunda e ele a trata bem, mas não tem amor entre eles.

Anacleto estava pasmo. Quanta coisa que ele não sabia, sequer imaginava. Como a rebeldia agrava os padecimentos da criatura. Olhava a sua vida e percebia que os prejuízos causados por si mesmo aos que o amavam e que ele deveria cuidar e proteger.

- Por que prenderam o seu patrão?

- Não entendo disto, mas parece que tem algo a ver com esses comunistas que mataram aí.

- Mataram? Quando?

- Ah! foi essa noite passada. Houve um tiroteio. Mas eu não sei bem. Eles entraram lá em casa, vasculharam as estantes de livros e levaram um, dizendo que era um livro errado.

- Errado?

- Não é bem isso, eu não sei dizer, mas era um livro que as pessoas não podem ter.

- Interessante!

- Triste! Dizem que ele vai para a capital, vai ficar preso lá.

- Mas, porque o senhor voltou? Por que não disse lá em casa quem era? Vai ficar?

- Calma, Táta, você está me bombardeando com tantas perguntas... na verdade, eu não sei te responder.

- Desculpa, meu menino. Perdão! É que eu estou tão feliz por te ver aqui. Você é como se fosse o meu filho, entende?

- Você me deixa emocionado, assim.

- Eu preciso pensar, Táta. Vim até aqui para pedir perdão aos meus filhos e até aquele desgraçado. Agora nem sei mais.

Anacleto se ergueu, abraçou a velha ama e se despediu.

- Para onde o senhor vai?

- Eu me ajeito, foi o que fiz nestes anos todos.

- Vai voltar aqui?

- Não sei Táta, te juro que não sei.

Viriata ficou olhando a pequena sacola que o viajante carregava e a sua aparência maltratada, embora asseada, enquanto Siá Tonha que providenciara o encontro e que de há muito vinha conversando com a ama, em sonho, sugeriu mentalmente a ideia que foi de pronto acolhida pela Táta.

- Eu tenho uma casinha pequena, que ganhei a algum tempo da tua família, para que eu descanse na velhice, quando não quiser ficar mais no casarão. Vou lá uma vez a cada quinzena, faço a limpeza, abro para arejar. Se o senhor quiser ficar lá.

Desdobrou a meia pesa acima do joelho e retirou a chave e um papel com o endereço, estendendo para ele.

Anacleto marejou os olhos de lágrimas. Precisava tanto de um lugar para descansar e por suas ideias em ordem.

Beijou as mãos da sua benfeitora e se foi.

Viriata ficou olhando aquele vulto que se afastava e murmurou:

- A justiça sempre chega! Nem que seja em cavalo manco!

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