Transformações em Rembrandt
- fergs
- 11 de mar.
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"Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou.
Nessa atitude encontramos uma postura disruptiva em relação ao comportamento clássico esperado para um pai que representa historicamente uma tradição. Alguns artistas têm retratado através de suas obras nuances que revelam particularidades sutis na caracterização de fatos históricos. Gênios da arte conseguem dizer sem palavras o que a linguagem verbal demora muito tempo para tentar definir. Foi o que fez o pintor holandês Rembrandt.
Encontra-se no museu Hermitage (Rússia) um dos mais belos quadros já feitos na história da arte. O retorno do filho pródigo do artista holandês Rembrandt (1606-1669) é uma de suas grandes obras. Rembrandt ficou conhecido, entre outras habilidades, por sua técnica aprimorada do claro e escuro, efeitos que criam o ambiente de forma e espaço com notável realidade. Viveu na época considerada o período de ouro da Holanda, quando o comércio, a ciência, a política e a cultura constituíram o auge holandês. Estudou na mesma universidade que Descartes e em 1634 atingiu o auge da sua carreira, sendo os temas bíblicos os preferidos de suas obras.
Rembrandt também era pródigo em adquirir objetos valiosos, o que resultou em consumir a sua fortuna e sua popularidade porque passou a ser perseguido pelos credores. A sua vida de luxúria levou-o a perder todos os seus bens, sofrendo em torno de 25 processos judiciais e muitas de suas obras foram a leilões.
Parece que também Rembrandt em sua vida experimentou algo semelhante ao que aconteceu com o filho pródigo, períodos de euforia e grandiosidade dando lugar à consequências desastrosas na sequência de sua vida. Apogeu e ruína, mas também com um terceiro momento de maturidade e aquisições novas que, no caso do artista, refletiram-se na maturidade de sua obra.
O quadro O regresso do Filho pródigo é uma das suas últimas obras e encontra-se exatamente inspirada na parábola bíblica do evangelho de São Lucas. Essa pintura de Rembrandt pintada entre 1862 e 1865 encontra-se no museu Hermitage em São Petersburgo, na Rússia.
Algumas particularidades chamam a atenção para nosso estudo.

O pai, uma das figuras centrais da pintura, mostra uma atitude de acolhimento afetivo onde a receptividade fica evidenciada inicialmente no olhar pois há uma inclinação para o lado esquerdo do coração e este não é um olhar de justiceiro e sim, de compaixão. No rosto compassivo do pai um dos seus olhos está para baixo e o outro para longe quase meditativo, suscitando a ideia de que não está emocionalmente condenando o filho, pelo contrário, sugerindo sentimentos brandos em seu mundo afetivo.

Suas duas mãos estão pousadas na parte superior das costas do filho e destaca-se a dupla polaridade ali representada. A mão esquerda é masculina forte e viril, representando a autoridade do pai, já a mão direita tem os dedos longos, suaves e delicados, nitidamente femininos, transmitindo afeto e ternura, sentimentos relacionados ao aspecto maternal. Essa é a parte da sua pintura que melhor evidencia a bipolaridade equilibrada do seu mundo interno.
O pai está de frente para o filho e para o observador, mas são as mãos dele, num gesto de acolhimento, repousadas sobre o tecido grosseiro da veste do filho, que unem o pai misericordioso e o filho arrependido. Em pinturas desse tipo, o ato de tocar com as mãos responde ao desejo de mostrar o afeto entre pessoas. A visão, de ordinário, exclui necessariamente o contato físico, porque para ver é preciso tomar distância do que se olha. Tocar é mais imediato que ver. (Alpers. Svetlana. Projeto de Rembrandt: o ateliê e o mercado. São Paulo, Cia das Letras, 2010 Pag 79)
Também podemos dizer que ver é uma forma de tocar, especialmente na tela de Rembrandt, onde as imagens transmitem vivamente a experiência de muitos sentidos. As mãos, de qualquer modo, parecem se misturar ao corpo do filho; o velho pai vê o coração de seu filho através das mãos, para ele tocar é também ver. Poderíamos dizer que é uma atitude tocante.

O filho, com a cabeça raspada em sinal de arrependimento e uma roupa esfarrapada, parece esconder a cabeça no colo do pai. Muito tocante é também a postura do filho, ele está ajoelhado, numa espécie de entrega total à misericórdia do pai, podendo nos remeter também à imagem de um feto, como que a sugerir essa condição primordial em que todos iniciamos nossa jornada de fragilidade na existência. Rembrandt pinta seu rosto numa semi-sombra, sugerindo uma simbiose fundamental para o momento. O filho é totalmente acolhido pela ternura do pai, de modo que sua cabeça parece afundar no ventre do genitor.
Nos pés, o sinal do desgaste onde uma sandália está desgastada e o outro pé descalço, representando sua condição de infância, enquanto que o outro sugere sua caminhada trôpega. Rembrandt retrata a caminhada em suas condições mais árduas, conseguindo demonstrar nos detalhes da imagem esse longo trajeto que constitui a passagem do tempo com suas agruras.

No quadro de Rembrandt temos ainda acima do pai à esquerda uma figura de mulher. Encontra-se em tons escuros, parecendo evitar o destaque, embora, não o protagonismo, conforme muitas vezes encontramos nas influências marcantes e decisivas.
Dentro de uma especulação Espírita, podemos pensar que seria a mãe desencarnada que o está inspirando?
Sabemos através da Doutrina Espírita que Espíritos desencarnados familiares participam ativamente de ideias e sentimentos inspirados. Agem no anonimato, mas são eles que suscitam escolhas e decisões importantes.
Porém, podemos pensar também que é a figura feminina que lhe inspira de dentro do seu coração, ou seja, por carregar dentro de si, em seu mundo íntimo, aspectos maternais. O pai, na parábola proposta, não é apenas um homem, no sentido do que se espera de um homem comum, mas um ser humano completo em sua integralidade que equilibra essas duas polaridades necessárias à harmonia psíquica e à saúde mental.
SOBRE A BISSEXUALIDADE PSÍQUICA
Portanto, independente de a bissexualidade biológica ser discutível, a bissexualidade psicológica é evidente: somos filhos de uma mulher e de um homem. Salientamos aqui que, mesmo na ausência do pai, esta ausência tem uma existência psíquica, e o pai ausente - de uma forma ou de outra - será um objeto psíquico presente no mundo interno do adolescente.
(Outeiral J. (1994) Adolescer: Estudos Sobre Adolescência. Porto Alegre. Artes Médicas, pág. 22)
Existe gravado no psíquico, o binômio do masculino e do feminino. De tal modo que essas duas possibilidades interagem permanentemente. O espiritismo ainda acrescenta que o Espírito ao reencarnar carrega consigo as marcas herdadas de si mesmo, asseverando que em múltiplas encarnações o espírito leva consigo as experiências de ter sido homem e mulher em variadas oportunidades.
200. Têm sexos os Espíritos? “Não como o entendeis, pois que os sexos dependem da organização. Há entre eles amor e simpatia, mas baseados na concordância dos sentimentos.”
201. Em nova existência, pode o Espírito que animou o corpo de um homem animar o de uma mulher e vice-versa? “Decerto; são os mesmos os Espíritos que animam os homens e as mulheres.” (KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 93. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2013)
Considerando que nas várias reencarnações os espíritos já passaram pelas experiências de serem homem ou mulher, é natural pensar que essas impressões são aquisições que ficam gravadas nas profundezas do psiquismo espiritual determinando tendências e predisposições que se manifestam nas encarnações seguintes. Naturalmente podemos pensar que esse grau de influência varia de caso para caso, sendo cada situação única, bem como cada encarnação ser marcada por específicas condições, conforme a necessidade reencarnatória de cada momento.
Também precisamos considerar que o ingresso na carne, quando o espírito mergulha no útero materno e depois percorre a experiência infantil com todas as suas vicissitudes, desde a forte influência materna e do ambiente uterino e logo a seguir do meio como um todo, esse psiquismo inaugural que chega terá novas inscrições e particularidades nunca experimentados até então. Um bebê será sempre alguém que nunca existiu antes, do modo como se apresenta frente ao infinito universo de experiências inéditas que passa a viver. Aquele que era, ou seja, o espírito reencarnante, não o é mais. O vir-a-ser que passa a acontecer determina o ser inédito que irá se constituindo na inter-relação dinâmica com pais e ambiente. Por sua vez, o espírito que chega, por trazer marcas profundas de tendências inatas, também influencia fortemente o meio no qual está chegando e os personagens diretos envolvidos com ele, ou seja, pai, mãe ou quem estiver diretamente ligado a ele, também não serão mais os mesmos. Essa inter influência recíproca de múltiplas direções recíprocas determinarão um verdadeiro big bang na vida psico-afetiva de todos os personagens.
Essa é a finalidade da reencarnação, a de criar algo novo, inédito por ser somente assim que se possa modificar o que se tenha vivido no passado. O crescimento e evolução espiritual só se justificam se houver experiências novas no campo do aprendizado.
A qualidade dos vínculos afetivos na encarnação precisam ser um repositório de variadas vivências satisfatórias, mais ricas quanto possível, a fim de que a experiência do amor possa gradativamente ir suplantando as mazelas espirituais de todos os personagens que se reencontram para novos despertares.
Há pais que receiam perder o respeito se forem afetivos demais com seus filhos. É exatamente o contrário o que se passa quando isso acontece.
Jesus está ensinando isso na parábola do filho pródigo. A afetividade não é atributo de uma mulher, e sim da experiência afetiva que se desenvolveu dentro do ser humano de qualquer sexo. Muito ao contrário de denotar fragilidade, demonstra fortaleza.
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